À primeira vista, o cérebro e o intestino estão distantes um do outro: o cérebro, isolado dentro do crânio, no topo do nosso corpo; o intestino (grosso), na parte final e baixa do abdômen. Porém, como escreveu Shakespeare, “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”. O mesmo parece valer para esses dois órgãos do nosso corpo. Abaixo, relato uma série de descobertas reportadas num artigo da revista Nature e em outros veículos de comunicação científica, muitas delas nos últimos anos, abordando um assunto muito interessante: a influência das bactérias na nossa saúde mental.
Quase todos os tecidos e órgãos do nosso corpo, principalmente, do trato intestinal, se comunicam com o cérebro; isso não é novidade. Mas o que tem sido uma surpresa é a influência no cérebro dos microrganismos que crescem no nosso intestino, predominantemente no intestino grosso. Sim, cada vez mais, pesquisadores pelo mundo têm reportado novas descobertas indicando que as bactérias intestinais (microbioma) afetam nossa saúde mental de maneiras bastante inesperadas. Por hora, muitos desses estudos foram realizados em modelos de laboratório, como camundongos, mas alguns já foram confirmados, mesmo que preliminarmente, em humanos. São resultados robustos, que podem ter implicações importantes em nossa dieta e estilo de vida.
Em 2006, a neurocientista Jane Foster observou diferenças comportamentais entre camundongos saudáveis e camundongos que não tinham um microbioma intestinal. Seu estudo foi recebido com bastante ceticismo pela comunidade científica, que ainda não entendia e não aceitava essa curiosa conexão. Porém, desde então, os milhares de artigos científicos publicados sobre o assunto fazem com que até os pesquisadores mais céticos fiquem sem argumentos. As evidências são cada vez mais sólidas e numerosas. Doenças como Parkinson e autismo, entre outras, podem ter sua origem, pelo menos em alguns casos, no intestino.
Em 1817, o cirurgião Inglês James Parkinson descreveu os primeiros sintomas da doença que seria conhecida, no futuro, pelo seu nome (doença de Parkinson). Já naquela época, o Dr. James relatou o episódio de um paciente que, além da dormência e formigamento nos braços e mãos, tinha um abdômen inchado; ele prescreveu laxante para o paciente, que melhorou de todos os sintomas. Ou seja, de alguma forma, os distúrbios intestinais pareciam induzir sintomas semelhantes aos de pacientes nos estágios iniciais da doença de Parkinson. É sabido que alguns pacientes, antes de desenvolverem a doença de Parkinson, apresentam problemas intestinais. Isso não quer dizer que qualquer pessoa que tenha distúrbios intestinais vai desenvolver a doença de Parkinson, mas é uma associação peculiar.
O que leva ao desenvolvimento do mal de Parkinson, ainda não é bem compreendido. Sabe-se que se deve à degeneração dos nervos responsáveis pelo controle do movimento. Mais especificamente, uma proteína presente nos nervos e chamada de alfa-sinucleína muda de conformação, induzindo a formação de agregados proteicos, que são tóxicos para os neurônios. Como e por que essa proteína muda a sua conformação é a grande questão. Aliás, a formação de agregados proteicos é um mecanismo compartilhado com muitas doenças neurodegenerativas. No caso do Alzheimer, são as proteínas beta-amilóide e tau que parecem ser as vilãs da história.
Em 2015, o neurologista Robert Friedland propôs uma teoria para o surgimento da doença de Parkinson: que proteínas de bactérias que vivem no nosso intestino são as responsáveis pela formação dos agregados proteicos. Isso, porque muitas dessas bactérias que vivem no nosso intestino produzem proteínas “parecidas” com a alfa-sinucleína. Para comprovar a sua hipótese, ele alimentou camundongos de laboratório com bactérias que produzem uma dessas proteínas, chamada de “curli”, e observou um aumento de agregados de alfa-sinucleína no cérebro desses animais. Em 2020, um outro grupo de pesquisa na Califórnia confirmou de forma independente esses achados e observou ainda que os camundongos apresentavam problemas motores, sintomas parecidos com os da doença de Parkinson.
Como a proteína da bactéria (curli) consegue chegar ao cérebro e induzir a agregação da alfa-sinucleína? Uma possiblidade, é a transmissão através do nervo vago, um dos principais nervos que conecta o intestino (e outros órgãos) à base do cérebro. No passado, anos 1970, a remoção cirúrgica desse nervo era procedimento comum para reduzir a produção de suco gástrico e a formação de úlceras pépticas. Curiosamente se observou que pessoas que foram submetidas a esse tratamento são menos suscetíveis a desenvolverem a doença de Parkinson. Aqui é importante um parêntese. A doença de Parkinson (assim como outras doenças neurológicas) é provavelmente multifatorial. Ou seja, existem diversas condições que podem levar ao seu surgimento num indivíduo e o microbioma possivelmente é apenas uma delas.
Se a doença de Parkinson pode ter origem nas bactérias do intestino (pelo menos para alguns pacientes), é provável que outras doenças do sistema nervoso também a tenham. O imunologista Eran Elinav sempre ficou intrigado com o fato de diferentes pacientes com síndrome de esclerose lateral amiotrófica (ALS) apresentarem uma variabilidade tão grande no desenvolvimento da doença: enquanto muitos deterioram rapidamente, alguns progridem lentamente. O famoso físico Stephen Hawking foi diagnosticado aos 21 anos de idade com ALS e recebeu uma expectativa de vida de 2 a 3 anos; ele viveu até os 76 anos.
Uma possibilidade, pensou o pesquisador, é que o microbioma do paciente (algo que pode variar muito de um indivíduo para outro) influencie o andamento da doença. Utilizando camundongos geneticamente modificados que sofrem de ALS, seu grupo de pesquisa constatou que animais sem microbioma (eliminados por antibióticos, ou que já nasceram sem bactérias no intestino) desenvolvem os sintomas da doença muito mais rapidamente. Analisando-se cuidadosamente o microbioma dos camundongos saudáveis observou-se que algumas espécies de bactérias aliviam os sintomas da doença enquanto outras os agravam. Uma dessas espécies de bactéria, chamada de “Akkermansia muciniphila”, parece exercer seu efeito benéfico porque produz nicotinamida, uma molécula conhecida também como vitamina B3.
Pacientes com ALS apresentam, de forma geral, níveis mais baixos de vitamina B3 no sangue e no cérebro e alguns estudos clínicos com um número ainda pequeno de pacientes, realizados no passado, já indicavam que a suplementação com vitamina B3 alivia os sintomas da ALS. Eran Elinav está planejando novos estudos mais completos e abrangentes para avaliar melhor o efeito da suplementação com vitamina B3 nesses pacientes. Aguardemos os novos resultados.
A influência do microbioma não se restringe ao indivíduo e, possivelmente, afeta também a geração futura. Estudos epidemiológicos indicam que infecções em gestantes aumentam as chances da criança nascer com síndrome de autismo. Experiências feitas com camundongos corroboram essa observação, embora seja difícil reproduzir os sintomas de autismo nesses animais. Mesmo com essas limitações experimentais, observou-se que camundongas prenhas tratadas com substâncias que induzem uma resposta imunológica forte (p.ex., RNA, um componente comumente encontrado em vírus), dão à luz filhotes com comportamentos semelhantes aos de crianças autistas (ansiedade e movimentos repetitivos). Novamente, é muito difícil traçar um paralelo entre o comportamento de um animal, como um camundongo, e um ser humano; mas são elementos que se somam às observações epidemiológicas e intrigam os pesquisadores.
Outra bactéria que parece “ajudar” o nosso cérebro foi identificada pelo grupo de pesquisa do neurobiologista Mauro Costa-Mattioli, do Baylor College of Medicine, em Houston nos EUA. Ele isolou uma espécie de bactéria (Lactobacillus reuteri) que parece melhorar os sintomas desses camundongos “autistas”. E a descoberta foi feita de uma forma bastante curiosa. Quando camundongos “autistas” são criados juntamente com camundongos saudáveis (que têm a bactéria L. reuteri no intestino) eles se curam por um mecanismo inusitado. Um comportamento comum de camundongos é o de comer fezes; quando os camundongos “autistas” convivem com, e comem as fezes dos camundongos saudáveis, eles ingerem a bactéria L. reuteri, que alivia e melhora os sintomas da doença (ansiedade e movimentos repetitivos). O Dr. Mauro ainda não sabe como essa bactéria age, mas suspeita que seja alguma substância produzida e secretada por ela que é levada para o cérebro. Seu grupo está estudando diferentes variantes da L. reuteri para identificar essa substância.
Outras doenças, como o Alzheimer e a depressão estão na mira de pesquisadores pelo mundo, que buscam possíveis associações entre o aparecimento e/ou agravamento da doença e o microbioma do paciente. O efeito do microbioma na nossa saúde já foi tema de diversos blogs que escrevi, como recentemente, quando discutimos sua influência na recuperação muscular de maratonistas. Também já falamos sobre os efeitos benéficos das fibras alimentares no nosso microbioma. Com relação à alimentação, um estudo realizado por pesquisadores de Stanford e publicado este ano, mostrou que alimentos fermentados (ricos em bactérias e leveduras) reduzem os níveis de marcadores inflamatórios, mesmo comparado com indivíduos que comem uma dieta saudável, rica em vegetais, frutas e fibras (mas sem a ingestão de alimentos fermentados – veja-se a matéria do NY Times, indicada abaixo em leituras adicionais). Ou seja, nossos hábitos alimentares influenciam nosso microbioma, que por sua vez, modula a nossa saúde.
A verdade, é que esse campo de estudo ainda é muito recente. Primeiro, porque não tínhamos as ferramentas para estudar o microbioma com os detalhes que precisávamos. Por exemplo, muitas das espécies de bactérias presentes nos nossos intestinos (e na natureza) são difíceis de cultivar em laboratório. Elas simplesmente não crescem adequadamente numa placa de Petri porque não conseguimos reproduzir o ambiente onde elas vivem. Sem poder cultivá-las, é difícil saber as substâncias que elas produzem. Hoje, com os avanços da genômica e das técnicas de sequenciamento do material genético, podemos não apenas identificar todas as bactérias, fungos e vírus que vivem no nosso corpo, como também saber o estado metabólico das mesmas (p.ex., nutrientes que elas consomem e quais substâncias elas produzem). Por isso, as próximas décadas prometem ser bastante estimulantes, à medida que entendermos melhor a relação entre alimentação, microbioma e saúde.
Ricardo José Giordano (O Globo 20/09/21)
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