
Sonhos têm papel na regulação emocional e estão associados a questões de saúde mental.
Todos têm alguma história com sonhos. Pode ser um pesadelo que se repetiu durante a infância, um sonho muito marcante ou somente a sensação de ter menos episódios fantasiosos à noite do que o resto das pessoas.
Os sonhos são um assunto para o qual a ciência tem mais perguntas do que respostas. Então, esta edição será um pouco diferente. Explico o que já foi comprovado e quais são as principais hipóteses sobre o cérebro enquanto dormimos.
O que é o sonho? De forma mais geral, é qualquer atividade mental que acontece durante o sono, explica o médico e neurocientista Sérgio Arthuro, pesquisador no Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Por exemplo: um pensamento, emoção ou sensopercepção (captar e codificar estímulos sensoriais). Os sonhos vêm da atividade elétrica do cérebro, órgão que é tão ativo no sono quanto é durante a vigília (fase acordada), de acordo com o neurocirurgião e neurocientista Rahul Jandial, autor do livro “Por que Sonhamos” (Editora Sextante).
“Os sonhos nos afetam tanto porque os vivenciamos como reais. Do ponto de vista fisiológico, a alegria que sentimos sonhando não é diferente da que sentimos acordados, e o mesmo vale para o pavor, a frustração, a excitação sexual, a raiva e o medo”, escreve Jandial na obra.
Eles ocupam de 20% a 25% da noite de sono, segundo Geraldo Lorenzi, coordenador do Laboratório de Investigação Médica do Sono da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
“Há um repasse do que aconteceu durante o dia, com grande conteúdo emocional”, diz. “É nesse momento que você esquece de algumas coisas e se lembra de outras.”
Ao longo da história, o sonho sempre foi associado à fase do sono REM —explicarei melhor abaixo—, mas ele pode acontecer em qualquer um dos quatro estágios, com características diferentes.
Fato é que os sonhos vívidos, cheios de detalhes e com fortes emoções acontecem durante o REM.
1. Início do sono/fase de transição
É quando o ritmo da atividade cerebral cai e começa a transição da vigília para o sono. “A gente está começando a dormir, não está nem 100% acordado, nem 100% dormindo”, explica Arthuro.
Por ser uma fase transitória, ela dura pouco tempo, assim como os sonhos durante esse estágio.
- “Você pode ver alguma coisa rapidamente, ouvir algum barulho, a voz de uma pessoa, ou, às vezes, você até começa a ter uns pensamentos estranhos, e fica em dúvida: ‘por que estou pensando nisso?'”, exemplifica o neurocientista.
2. Sono leve
É o estágio com maior duração, ocupa cerca de 50% do tempo total de sono. Nele, a pessoa já está dormindo, mas pode acordar com algum barulho ou interrupção.
Os sonhos desta fase são relacionados com acontecimentos do dia, da semana ou do mês. “O sono leve está relacionado à consolidação das memórias, por isso, os sonhos geralmente têm a ver com coisas que aconteceram”, relata Arthuro.
3. Sono profundo
É o momento em que o cérebro realmente descansa. Ele fica super lento e sincronizado e passa por uma limpeza das toxinas que se acumularam ao longo do dia e pela reposição de neurotransmissores que foram gastos na vigília.
↳ Esse acontecimento se relaciona com as doenças neurodegenerativas, principalmente o Alzheimer, na qual há um acúmulo de proteínas no cérebro. A privação de sono, e consequente falta dessa “limpeza”, aumenta o risco delas.
Nesta etapa, há a inércia do sono, que é a dificuldade em acordar. “As pessoas, quando são acordadas do sono profundo, ficam desorientadas por um tempo”, relata o neurocientista.
Por causa dessa lentidão e sincronização do cérebro, os sonhos são menos frequentes no sono profundo.
4. Sono REM
REM quer dizer “rapid eye movement”, que é o movimento rápido dos olhos, ação que acontece durante esta fase do sono (mesmo de olhos fechados).
É nela que acontecem os sonhos mais ricos em imagens, longos e estruturados como histórias —por mais bizarras que elas possam ser.
As fases de sono vão acontecendo em ciclos. A cada 90 minutos, em média, o cérebro passa pelos quatro estágios. E aí entra uma informação importante: o sono REM aumenta de duração à medida que o tempo passa na noite.
Entenda: o primeiro episódio de REM na noite dura alguns minutos e o último pode chegar a trinta, quarenta minutos ou até uma hora, explica Arthuro.
- “É por isso que a maioria dos sonhos dos quais as pessoas se recordam é aquele último que elas têm quando estão acordando. Porque ele é o episódio de sono REM maior”, diz.
É como se a primeira metade da noite servisse para descansar, com todos os processos de limpeza e renovação. A segunda metade, por sua vez, serviria para preparar o cérebro para acordar.
Essa pode ser, inclusive, uma das funções do sonho: preparar as pessoas para acordarem. Mas a ciência ainda não tem clareza sobre os reais motivos de sonharmos.
A existência de processos semelhantes aos sonhos em animais vertebrados, como os anfíbios, e invertebrados, como os moluscos, indica que há uma vantagem evolutiva em sonhar, segundo Lorenzi.
- “É um momento de organização dos neurônios. Você fica mais esperto, fica melhor para se safar dos problemas do dia seguinte. A interpretação dos sonhos é um caminho difícil […], mas não existe nenhuma dúvida de que alguma coisa fundamental está acontecendo ali”, afirma.
E aqueles que dizem não sonhar? Na verdade, eles só não se lembram deles. “Para se lembrar dos sonhos, você tem que acordar durante o REM, principalmente. Então, se você tem um sono mais consolidado, sem despertares durante essa fase, você não vai se lembrar”, explica Arthuro.
Isso é um problema? Em geral, não. Se a pessoa não se lembra dos sonhos, mas dorme bem, sem problemas de memória ou concentração, a princípio não tem nada de errado. Pode ser somente um traço dela.
- Isso tem nome: neurodiversidade. Cada pessoa tem um ritmo biológico e também pode ter uma variação na recordação dos sonhos.
Mas se a pessoa não se lembra dos sonhos e tem queixas de sono ruim, é preciso investigar. A privação de sono pode estar impedindo você de sonhar.
↳ Lembra que o sono REM acontece principalmente na segunda metade da noite? “Uma parte significativa das pessoas que não lembram dos sonhos é porque não estão dormindo o suficiente para alcançá-lo”, relata Arthuro.
Sonhos podem dizer algo sobre a saúde? Os pesadelos recorrentes estão associados com algumas doenças, como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e a depressão grave.
Eles também são fator de risco para o suicídio. “Muito provavelmente isso tem a ver com a regulação emocional, mas ainda não sabemos a ligação direta entre uma coisa e outra”, diz Arthuro.
- Trabalhos científicos recentes apontam que tanto o sono REM como os sonhos são importantes para o processo de regulação emocional.
“Como as emoções participam de vários outros sistemas, a gente acredita que essa explosão de casos de ansiedade e depressão, uma parte desses casos pelo menos, pode ser decorrente da privação de sono”, afirma o neurocientista.
Há relatos na literatura científica de pessoas que descobriram doenças a partir de sonhos, segundo Arthuro. Por exemplo: alguém que sonhou que estava com a barriga pegando fogo e, depois, descobriu uma úlcera no estômago.
São inúmeros casos, segundo ele, mas não há um estudo consistente. A exceção são os pesadelos, que comprovadamente podem ser causa ou consequência de uma ansiedade excessiva durante o período acordado.
“Eu diria hoje claramente que o sono tem tudo a ver com a saúde. Para o sonho, isso ainda não está tão claro”, complementa.
Como devemos olhar para o sonho, então? Como forma de autoconhecimento. “Nossos sonhos refletem medos e desejos. Conhecê-los aumenta nossa autoconsciência, faz com que saibamos nossas limitações, isso acaba sendo importante para a saúde”, argumenta Arthuro.
Para quem quer explorá-los, a indicação é desenvolver o hábito de pensar mais sobre eles, conversar com outras pessoas e, quando possível, anotar o conteúdo, criando uma espécie de diário do sonho.
Os especialistas em sono e neurociência reforçam: vale a pena prestar atenção nos sonhos.
“Eles nos possibilitam insights que de outra forma não conseguiríamos ter. Podem estabelecer associações entre acontecimentos aparentemente sem relação, entre o que aconteceu no passado e o que pode vir a acontecer no futuro. A poderosa neurobiologia por trás do sonhar me deixa convencido de que os sonhos têm significado e propósito”, escreve Jandial em “Por que Sonhamos”.
Fonte (FSP, 08/4/25)
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