E o remédio contra insônia zolpidem perturba ambos
Graças ao investimento do governo dinamarquês em pesquisa, hoje sabemos que o sono tem uma função primordial, em vez de servir meramente como um bônus para a memória ou o descanso de corpo e mente. É nesse estado que a faxina diária do cérebro acontece, como mostrou em 2013 o laboratório da neurocientista dinamarquesa Maiken Nedergaard.
Neurônios, como todas as outras células do corpo, produzem lixo, que eles excretam no líquido que banha as células. No corpo, esse líquido cheio de sujeira celular é coletado pelos vasos linfáticos, que o devolvem ao sangue, onde a sujeira chega aos rins e é excretada.
O cérebro, no entanto, não tem vasos linfáticos óbvios como o resto do corpo. No cérebro, os metabólitos (nome chique do lixo produzido pelo metabolismo dos neurônios) vão se acumulando no líquido cefalorraquidiano —ou líquor, para facilitar— que envolve os neurônios. Como pouco líquor circula no estado acordado, metabólitos, como adenosina, se acumulam… até que eles mesmos causam a mudança de estado do cérebro, da vigília para o sono.
No cérebro agora adormecido, o espaço entre os neurônios se amplia, o líquor circula mais livremente, e leva com ele os metabólitos acumulados, até que eventualmente, agora limpo, o cérebro acorda… e começa tudo outra vez.
Curiosamente, o líquor que lava os detritos dos neurônios deixa o cérebro não pelo interior dos vasos sanguíneos, onde o sangue circula, mas ao longo desses vasos. É como se todo o lixo produzido dentro da sua casa corresse por fora dos canos que trazem água limpa, sem precisar de um canal próprio.
Mas, se corre por fora dos vasos sanguíneos, o que impele o retorno do líquor que lava o cérebro?
Nedergaard voltou à carga com um daqueles estudos que só primeiro mundo que entende a razão de se fazer ciência pode contribuir à humanidade.
O estudo, que aparece na revista Cell, é um show de bom uso de alta tecnologia, começando pela criação de camundongos cujo fígado secreta albumina verde fluorescente no sangue, cujo fluxo então pode ser visualizado com uma fibra ótica inserida no cérebro. Ao mesmo tempo, tinta fluorescente vermelha injetada no líquor permite ver esse líquido correndo por fora dos vasos sanguíneos.
O grupo já sabia que o aumento do fluxo de líquor durante o sono resulta do silenciamento de neurônios no locus coeruleus, o “lugar azul” do cérebro, que param assim de liberar noradrenalina. Por outro lado, durante o sono, esses neurônios ainda produzem surtos minúsculos de noradrenalina, substância sabidamente vasoconstritora. No novo estudo, o laboratório demonstra que, mais ou menos uma vez por minuto, um micro-surto de noradrenalina espreme os vasos sanguíneos do cérebro e impele o líquor adiante.
Durante o sono, esses micro-surtos correspondem a micro-despertares. Curiosamente, dar zolpidem (droga usada para aliviar a insônia) aos camundongos aumenta o número de micro-despertares, mas suprime os micro-surtos de noradrenalina, e com isso reduz a taxa de limpeza do lixo que se acumula no cérebro.
Antes que usuários de zolpidem (conheço duas…) se apavorem e larguem o remédio, é bom lembrar que talvez seja exatamente por tornar mais lenta a limpeza do cérebro que ele prolonga o sono. Depois, insônia é o maior preditor de demência precoce, então o benefício do sono pode valer os riscos ainda desconhecidos do zolpidem. Somente mais ciência dirá.
Por Suzana Herculano-Houzel (FSP 17/01/25)
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