De ontem para hoje recebi dois pedidos de socorro. Não assim, literalmente, mas em forma de desespero pelo uso da mesma droga da minha preferência. Assim como eu, as duas pessoas, com quem converso há um bom tempo pelo WattsApp por indicação de uma psicóloga a quem procuraram, são dependentes, ou seja, portadores de uma doença que não tem cura, mas pode ser controlada. Num sábado 24 de outubro, pedi ajuda a um jornalista amigo que já tinha passado por isso. Ele foi me buscar num quarto de hotel onde entrei na noite anterior. Há quatro dias não parava de injetar cocaína na corrente sanguínea, apesar de, não sei como, ainda conseguisse trabalhar na sucursal de um grande jornal. Pedi ajuda não para “me curar”, como acreditam quem não conhece o problema. Pedi ajuda porque, como os que me mandaram mensagens, não via saída para minha vida. Ao ser internado, ainda tinha droga comigo. Entreguei a quem me atendeu na clínica Quinta do Sol. No meu braço direito havia uma ferida imensa, onde eu enfiava a agulha porque ali conseguia achar uma veia. Sou destro, mas é assim que acontece. Quarenta e cinco dias depois, ganhei alta médica. Foi há 30 anos. Depois de amanhã vou conversar com os pacientes internados nesta mesma clínica, onde sou o mais antigo voluntário em atividade. O tema: esperança. No fundo é o que eu tinha ao telefonar para meu amigo onde tive paranoia e convulsões. Se fosse overdose, teria morrido. Escapei dela outras vezes, a primeira quando bebia e destruí um carro num poste e acordei na Emergência do Hospital Evangélico. Antes de sair xinguei os médicos. À noite, com várias curativos no rosto, fui beber de novo.
A outra foi com um princípio de septicemia porque injetei bactérias no cuspe depois de lamber a cocaína grudada no plástico onde estava guardada. Substituí o álcool pelo veneno branco, na prova de que a doença não é de uma droga específica, mas de todas, principalmente a que não conhecemos. Falo isso onde me abrem espaço. A ajuda que meus amigos pedem só poderá abrir o caminho para que voltem a ter controle pela própria vida se nossa alma se abrir pra isso. No meu tempo de internamento se falava em “cair a ficha”. Hoje o termo entre o pacientes é “virar a chave”. Clínica não é tenda de milagres onde se entra por uma porta e sai por outra “curado”. Um dia consegui “ouvir” o “só por hoje”; depois fez sentido o “evite o primeiro gole”, que serve para tudo. Porque, na verdade, durante as terapias comecei a me olhar direito. Isso é difícil. Nos defendemos sempre – com medo. Eu já fazia terapia desde a época do álcool – e isso ajudou muito. Continuo no divã. A droga é uma consequência do que carregamos por dentro – normalmente supervalorizando os “entulhos”, que se transformam em monstros. Eles só aumentam no uso. O voluntariado faz parte do meu tratamento, que é pra sempre. Portanto, há, sim, esperança. Uma outra pessoa com quem converso há muito tempo fora da clínica é um jovem que já teve 18 internamentos – e na sua loucura da mistura de drogas, chegou a ameaçar com faca a mãe que lhe dá todo acolhimento possível. Está há mais de um ano bem – limpo, como dizemos. Tem um “calo” na alma, como sempre digo, que ainda não conseguiu deixar do tamanho que é. Mas sabe que, quando ele aperta, está em risco. Foi assim que aconteceu recentemente comigo. Não tive vontade de abrir uma garrafa ou ir atrás do traficante. Fui ao meu psiquiatra e a um psicólogo. Houve dias de desespero total, mas eu sabia que, seguindo o caminho da conversa, dos remédios, passaria. Passou! Foi mais uma aprendizado nesta caminhada. Aprendo muito com “meu time” de dependentes. Sei que todos os que sofrem têm e podem viver a vida como ela é se priorizarem o controle da doença da forma que melhor se adaptam, sem desistir nunca. Cada um tem o seu tempo. O meu demorou 20 anos.
Do site ZéBeto
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