Pessoas com diferenças marcantes só conseguem seguir adiante se entenderem que nem sempre alguém irá acender uma luz diante de suas escuridões
Ouvi um psicanalista falar certa vez que quando umas das encrencas da vida nos cerca temos duas opções muito claras: amarrar o bode e ficar atado com aquele amargor, aquela experiência ruim, até perder de vista e perturbar a mente ou praticar o ‘let it be’, o deixar rolar, e não incentivar que se consolide na memória o calundu, o desgosto de um lampejo que maltrata.
Assim, quando alguém nos fecha no trânsito, bate na traseira do carro novinho, nos decepciona com atitudes que ferroam a alma, tentar não se entregar ao ímpeto do revide e confiar que a sabedoria do tempo é mais profunda e sagaz que a explosão e o desespero do agir de sobressalto nos habilita a avançar como humanos.
O ‘let it be’ não tem nada de ser bundão ou ser conformado diante as injustiças, os preconceitos, os malfeitos com o mundo, com a natureza e com as pessoas. Também não é ser inativo com aquilo que violenta, que massacra, fazer vista grossa diante de flagrantes irresponsabilidades emocionais.
Praticar o ‘let it be’ é acreditar que agarrar dentro de si uma sensação que consome o pensamento, que nutre ódio, que turva os olhos não é a única possibilidade para o escoar de nossas emoções, angústias e tristezas. Sentir é terapêutico, mas chafurdar naquilo que não nos fez bem é vício que nos aprisiona.
E como explica com muito mais propriedade a genial Maria Homem –e que amplio livremente aqui o conceito para além do perdão sentimental—, o descortinar um momento turvo de magoas ou rancores não tem nada de sensação de superioridade moral, de bondade ou divindade, mas, sim, a compreensão de que todos estamos “num mesmo patamar de gente”, de aprendizagem e sujeitos a descuidos.
Pessoas com diferenças marcantes, como a minha, só conseguem seguir adiante na vida com relativa desenvoltura se entender que nem todo o mundo irá te abraçar com naturalidade, que nem todo lugar suportará suas novidades de ser, que nem sempre alguém irá acender uma luz diante de suas escuridões.
Paul McCartney durante apresentação para quase 53 mil pessoas no Mineirão, em Belo Horizonte
Sim, tenho lembranças dos buracos que cai, das portas que não passei, dos olhares que me ferroaram, mas nada foi suficiente para sufocar ou aterrar uma crença de que eu poderia ouvir a música, sacolejar na dança, vibrar com os acordes. Não posso esperar pelo entendimento de todos para exercer minha plenitude, mas posso deixar rolar –algumas pedras— e ser mais alegre do que triste.
Sir Paul Mc Cartney está no Brasil e traz com ele seus 81 anos um jeito macio de encantar as pessoas e espalhar pelo mundo oportunidades de exercer a leveza e a generosidade nas decisões, nas atitudes e nos amores. Claro, tudo regado a alguma rebeldia, um pouco de protesto e guitarras distorcidas.
Nestes tempos tão acumulados de erros com enervações que geraram guerras, calor e chuvas revoltados, telas que hipnotizam e abobecem em passagens de trinta segundos, abandonos de gentes, entoar o ‘let it be’ talvez represente alguma chance de fazermos algo diferente, de deixar passar o que passa e a agarrar, mudar, reaprumar o que nos importa.
Por Jairo Marques (FSP, matéria divulgada 05/12/23)
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