No cérebro, música alcança canais além dos destinados à audição ou à semântica
O intestino NÃO é o segundo cérebro —mas posso até concordar com o oposto: o cérebro pode ser um segundo intestino.
A Terra não é plana, o coração pulsa dentro do tórax, as vacinas fazem bem à humanidade. Convém dobrar-se aos fatos, as evidências não são questões de opinião. Aqueles que discordam, eu suponho, acreditam que cairão de uma borda rumo ao vazio caso naveguem em direção ao horizonte.
E tem mais: The Brian Jonestown Massacre é a melhor banda de rock de todos os tempos. Continuo, o conjunto de rock brasileiro Bike é um exemplo de que algumas pessoas lapidam heroicamente a arte —e ainda se divertem. Os felizardos que assistiram aos shows desses dois grupos, e também o do Trio Mocotó, no Cine Joia, em São Paulo, no dia 20 de abril, entendem o que eu falo.
Se você, queride leitore, sabe que, se viajar continuamente em única direção retornará ao ponto de partida, há de concordar comigo
O som do Brian Jonestown Massacre deixa seus ouvintes leves. Isso acontece pois a música, em nossos cérebros, alcança canais além dos destinados à audição ou à semântica. Sua força cresce nessa diversidade e expressa-se de maneira radical, pela sinestesia. Poucos de nós são sinestésicos. Entretanto, esse raro aspecto ajuda a explicar como a música impacta. Vamos conhecer melhor esse mistério, começando por alguns casos.
Um homem cego, que havia muito tentava entender as cores, um dia disse que, finalmente, descobriu o significado do escarlate: “é como o som de uma trombeta”. O compositor Franz Liszt (1811-1886) orientava a sua orquestra a tocar mais azul, não tão rosa. O matemático Pitágoras (570- 495 a.C) considerava a música uma subdivisão da matemática. Para cada tom deveria haver um intervalo harmônico, um número, um nome, uma cor e uma forma.
Sinestesia é essa condição neurológica que pareia os sensos. Para os sinestésicos, um estímulo provoca uma percepção a mais. Alguns deles dirão que a letra B é azul, ou que o nome Sandra traz o gosto da maçã. Em outros, sons ocasionam sensações táteis, gustativas ou olfativas. Não conhecemos exatamente a razão para essas complicadas percepções, também não sabemos se uma explicação para uma modalidade de sinestesia serve para outra. Entretanto não somos tão ignorantes assim, vamos nos arriscar a compreender.
Uma teoria sugere que a sinestesia ocorre porque um determinado estímulo, quando captado, provoca um fluxo de informações que terá como destino não apenas as áreas cerebrais ocupadas na decodificação desse estímulo. Dessa forma, estruturas do ouvido ativadas por uma música excitam não apenas agrupamentos de neurônios que cuidam da experiência do som mas outro que, por exemplo, pode estar encarregado da emergência da visão à consciência.
Outra hipótese diz algo diferente. Quando uma parte do cérebro, como deveria ser, promove um sentido à razão, a partir de uma informação sensorial, faz, no entanto, algo a mais. Também gera um tráfego de dados que terá como alvo uma outra região encefálica encarregada de elaborar outra sensação.
Outra argumentação trata a sinestesia não como uma sensação, mas como uma ideia organizada para resolver um “vácuo semântico”. A sinestesia surgiria por não existir nenhum repertório cognitivo preexistente para caracterizar um conceito abstrato. O cérebro forma uma conexão com um senso mais conhecido para definir algo que não consegue caracterizar.
Intuitivamente fazemos algo parecido quando dizemos que alguma cantora tem voz aveludada ou o som do Brian Jonestown Massacre é envolvente. Para os sinestésicos, esse recurso é mais intenso e real. A sinestesia seria uma ideia criada, tão consistente que causa uma certa experiência, semelhante a uma percepção.
Essas teorias circunscrevem-se nos sentidos e na cognição. Contudo deixam de lado a essencial propriedade da música de evocar emoções. Há evidências de que os sentimentos medeiam as associações transmodais em não sinestésicos, mas muito mais em sinestésicos. Associações transmodais são características na percepção sonora, em absoluto não musicais, que possibilitam certas associações. Utilizamos esse artifício quando relacionamos tons mais altos à alegria e à leveza e tons mais baixos à escuridão e à melancolia.
Comumente reagimos às nossas percepções, de qualquer modalidade, com emoções. Na população em geral, euforia ou tristeza, sensações viscerais, transe, distorções da percepção do tempo, e até mesmo a ilusão de flutuação, podem ser causadas por melodias. Contudo, pessoas com sinestesia musical têm respostas emocionais mais vezes e mais intensas. Presume-se que nessas pessoas, os centros cerebrais que processam os sentimentos, as estruturas límbicas, são abastecidos por um número maior de conexões. Os núcleos límbicos, então, intensamente ativados, influenciam áreas cerebrais de associação sensorial, causando as experiências sinestésicas.
Os sinestésicos abrem uma janela para que analisemos a consciência das sensações. Uma aplicação potencial da pesquisa sobre a sinestesia é o desenvolvimento de novas terapias para indivíduos com distúrbios de processamento sensorial, como os que sofrem de misofonia. Mas, além desse nobre objetivo, dobro-me aos fatos: o estudo da sinestesia me ajuda a compreender algumas sensações corporais que você, não sinestésico, terá ao ouvir o concerto de guitarras de Brian Jonestown Massacre.
Luciano M. Melo (FSP)
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