Estamos na Semana Mundial do Brincar, promovida pela organização Aliança pela Infância, e a mobilização pelo pleno desenvolvimento dos pequenos me remete ao mundo de Alice, uma garotinha de sete anos, que convive com uma deficiência grave e cujas liberdades de descobrir-se e estar em sociedade esbarram em questões primitivas como o não reconhecimento da diversidade e a não abertura de caminhos para que qualquer “serumano” exerça sua cidadania.
Agir com a cabeça foi a resposta da menina para o universo que a enxerga como alguém alheio ao comum e, com isso, tendo de lidar com enfrentamentos exóticos do tipo ter negado seu direito de escolher onde quer estudar, onde quer passear, onde quer ser criança —por falta de acessibilidade, de humanidade e de conhecimento.
Com os movimentos do corpo quase todos comprometidos e sem usar a fala, Alice, com apoio de uma adaptação simples em volta da cabeça, pesca, em uma caixa _ou numa fila organizada pela mãe_, letras por letras que vão formando palavras, que fazem surgir parágrafos e que darão sentido a um livro.
Talvez não vá ser a maior obra literária do planeta, mas a delicadeza, a intenção e o amor de seu feito já a faz ser uma das minhas preferidas, antes mesmo de ser publicada e lida.
Quando a gente sabe um pouquinho mais do esforço para parir um livro, é quase natural ter carisma pela cria.
Em vez de contar sobre um país cheio de seres imaginários e de desafios e encantos, a brincadeira intelectual da menininha começa desenhando um ambiente em que não há buracos nas calçadas para que ela e outros consigam transitar com mais dignidade. Alice é resistência em um país de “desmaravilhas”.
A despeito de alguns encherem páginas da história de dor e sofrimento por suas condutas desastrosas e sem empatia num país tão adoecido e carente, uma garotinha pinça a conta-gotas esperanças de uma realidade melhor.
Incrível como as falhas urbanas e arquitetônicas oprimem o coração dos pequenos com deficiência, mas seguem sem mobilizar nos adultos esforços reais para uma solução definitiva, concreta contra o concreto apodrecido, largado, abandonado.
O sacolejar provocado pelos buracos de rua faz tremer, além da cadeira de rodas, a segurança de ser benquisto, o desejo de querer ir além da porta da própria casa.
Nesse cenário, o brincar inclusivo torna-se ainda mais importante, e a brincadeira de escrever de Alice, mais relevante.
Quem brinca viaja para longe das dores das mazelas da imaturidade que teima em apartar, em olhar torto e em não dialogar com as diferenças. Quem brinca cria soluções mágicas e acolhedoras para desajustes que impedem a plena liberdade de sorrir e de ser.
Assim, uma casinha de papelão se torna palácio para qualquer tipo de princesa, aparelho ortopédico se torna armadura de super-heróis com poderes super-humanos, e letrinhas apontadas com a cabeça, com a força que resta a uma criança, tornam-se mais uma tentativa de chamar a atenção para as imperfeições que atrapalham o tempo da infância feliz.
Alice, como toda criança, não cabe em uma toca, ainda mais aquela delimitada não por um coelho espevitado, mas por carência de evolução de valores humanos.
Que seja o propósito de todos os que entendem este momento como uma chance de fazer tudo melhor, pensar sempre no mundo de Alice —e pensar para ela e para qualquer criança— as maravilhas de brincar.
Por: Jairo Marques (FSP 25/05/21)
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