Segregar é ignorar potenciais e limitar o desenvolvimento como ser humano
José de Araújo Neto
Psicólogo, é fundador e presidente da AME (Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais), entidade que há 30 anos realiza ações e projetos voltados à inclusão social
O decreto 10.502, publicado pelo governo federal no final de setembro, foi uma covardia e uma grande injustiça cometida contra as pessoas com deficiência no Brasil.
Construído na surdina e sob a influência de interesses estranhos aos anseios dessa população, o documento representa um escandaloso retrocesso frente aos esforços de inclusão empreendidos por diferentes atores ao longo dos últimos anos. Com o objetivo de instituir uma nova Política Nacional de Educação Especial, o decreto resgata visões e práticas ultrapassadas que desrespeitam os direitos humanos e são flagrantemente inconstitucionais. Em vez de estimular a inclusão das pessoas com deficiência, a adoção dos princípios contidos no texto vai ampliar a exclusão e o preconceito sofridos diariamente por elas.
Da forma como foi assinado, o decreto 10.502 se contrapõe às políticas inclusivas inscritas na Constituição de 1988, que assegura a todos os brasileiros o direito universal à educação, sem distinção de qualquer natureza. Além do texto constitucional, o documento viola também a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada no âmbito das Nações Unidas em 2007 e transformada em lei no Brasil por meio do decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Como se não bastasse, a nova abordagem sugerida contraria todos os consensos pedagógicos e científicos a respeito da educação das pessoas com deficiência. Nos últimos anos, a sociedade global evoluiu muito no entendimento dessa questão, e hoje podemos afirmar com segurança que a educação de crianças e adultos com qualquer deficiência, seja física ou intelectual, deve acontecer nas escolas regulares e nas mesmas classes dos demais alunos.
Sob o falso argumento da “liberdade de escolha”, os que se dizem favoráveis ao decreto parecem ignorar o histórico de discriminação e segregação que temos combatido por décadas. Impermeáveis aos argumentos amparados por fatos, dados e evidências, eles esquecem dos tempos em que havia resistência das escolas para aceitar alunos com deficiência. Graças à mobilização social, à pressão dos especialistas e ao reconhecimento das autoridades, traduzido em leis e regulamentações, essas barreiras vêm sendo progressivamente quebradas, com resultados positivos não apenas para as pessoas com deficiência, mas também para suas famílias, suas escolas, seus colegas e o conjunto da sociedade.1 8
Hoje, perto de 90% dos estudantes com deficiência ou transtornos de desenvolvimento estudam em escolas regulares. Esse índice só pôde ser alcançado a partir da adoção de políticas públicas inclusivas nas redes de ensino comum. Chega a ser desumano propor tamanho retrocesso em uma área em que, apesar dos percalços, temos sido muito bem-sucedidos.
Ultimamente temos visto inúmeras iniciativas destinadas a valorizar a diversidade e a representatividade de minorias nas empresas. Ora, promover a inclusão das pessoas com deficiência faz parte desse mesmo processo. Sabemos que a jornada é longa, trabalhosa e requer esforços de todos. Por isso mesmo é inadmissível retroceder.
Segregar a pessoa com deficiência em escolas ditas especiais é ignorar o seu potencial, limitando o seu desenvolvimento como ser humano. A experiência recente é enriquecedora e tem contribuído para equiparar as oportunidades de acesso a uma educação de qualidade. Impedir que eles exerçam, na plenitude, seu direito à educação não é só errado: é cruel e desonesto.
FSP 24/10/20
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