Viajar de navio pelos rios do Amazonas é mais que se deslocar, pode ser uma experiência, uma aventura e beleza, rodeado de incertezas e desorganização. Fui experimentar uma viagem de Manaus a Santarém, uma viagem programada para 36 horas. A desorganização é tamanha que nem no local de comprar a passagem, você consegue saber mais que o preço da mesma. Até eu entender como se daria essa “experiência”, foram dois dias indo e voltando do porto ao hotel e conversando diretamente com os marujos dos barcos e navios. No terceiro dia tomei coragem e resolvi fazer a viagem tão sonhada, com a única certeza que gostaria de descer em Parintis, a ilha da magia, para conhecer um pouco do folclore da região. Se não fosse possível, desceria em Santarém, se não fosse, chegaria nadando.
Já sabia da rede, minha cama para dois dias, da corda, só soube quando estava no navio. Sim, é preciso levar ou comprar uma corda para regular a altura que deseja dormir. Comprei a corda e a passagem entrando no navio. Se não fosse o charme da desorganização, tudo seria descabido e indecente, respeita-se o que já está impregnado. Amazonas é cercado de rios, não há estradas, ou se viaja de navio ou de avião. Assim, tudo se resolve do jeito que dá. A imensidão colorida dos rios mais parece o atlântico, cercado de naturezas exuberantes, ver e conviver com essa natureza, a razão de muitos em viajar
Entro com três mochilas no navio, duas horas antes do início da viagem, como fui orientado. Às 11hs era a saída. No “térreo” serve de espaço para transportar caminhões, pelo menos nesse navio que viajei. Vou descobrindo isso enquanto caminho pelo navio. No “primeiro” andar, quase lotado de redes, atende a maioria que gosta do ambiente com ar condicionado. Por isso que já estava lotado. Como não é o meu caso, subo mais um andar e o espaço é gigante, todo aberto nas laterais. Iria dormir com a ventilação da natureza. Escolho um lugar que me indicaram logo que pisei no navio. Armei a rede que comprei no comércio de Manaus, calculo a altura e amarro as cordas. Armei a rede ao lado do depósito dos coletes salva-vidas, ou seja, em um dos lados da rede, não teria vizinho, em compensação, se há alguma emergência, morro pisoteado e enrolado na rede. Encosto as mochilas nas grades da “salvação” e deito para ver e escutar o que acontece no “mercado flutuante”. Os vendedores sobem no navio enquanto este não parte, são centenas deles. O primeiro vendedor, eu já deitado na rede – pausa, isso já era 10 hs – me oferece a marmita para o almoço. Rejeito. Depois oferecem em série, um após o outro: quentinha, água, refrigerante, tomada para celular – as tomadas nesse navio eram no teto, então, o fio precisava ser comprido para apoiar o celular no chão – mata mosquito, relógios (todos prateados), palavra-certa (diversão para as crianças); tacacá, açaí, pamonha, tapioca, din-din (ou geladinho), redes, perfumes, sabonetes, pulseiras, colares, sandália havaiana falsificada. Me assustei quando me ofereceram seguro de vida. Isso foi uma constante, horas de muito trabalho para os vendedores, muita diversão e espera para mim. Música alta e o cheiro de comida em todo rio Amazonas.
Na primeira oportunidade, pergunto para um marujo o motivo do atraso do embarque e não soube responder. Meia hora depois, a segunda resposta, “estamos esperando o embarque de um caminhão”. Nessa “experiência” a largada aconteceu às 14 hs, ou seja, fiz um treinamento de viagem de cinco horas. A rede foi minha fiel companheira nessas horas e Freud meu conselheiro.
No primeiro deslocamento do navio, não havia mais vendedores e eu já havia trocado de estacionamento para minha cama. Encontrei um local mais espaçoso, se assim posso chamar. O navio havia espaço para 800 pessoas, nessa viagem, calculo uns 400 companheiros de viagem. Não quero nem imaginar o que seria viajar ao lado de 800 pessoas. A rede não cumpriria sua função, balançar.
O deslocamento é sereno e tranquilo, as horas passam num ritmo diferente, a pressa e angustia de chegar não existe, o barulho das águas e o visual amazônico perfuram qualquer sentimento de solidão. Converso com alguns passageiros, todos viajando por motivos particulares, calculo poucos turistas no navio. Por causa da seca, o deslocamento é mais lento, como me informa o comandante, “vamos atrasar algumas horas para chegar no destino final”, foi a sentença dele. Deixou de ser sentença para ser uma verdadeira experiência. No “terraço” do navio, há uma lanchonete, o básico para não morrer de sede nem de fome. No primeiro andar, uma cozinha, onde servem o café da manhã e jantar, incluído no preço da passagem. Como curiosidade, paguei R$ 180,00 para viajar. A rede quase custou mais caro. Ninguém reclama do atraso, escuto conversas sobre a vida, sobre família, grana e Corinthians. Ninguém sabe quem sou e não sei de ninguém, somos iguais, independente do destino, o navio para em três cidades para embarcar e desembarcar passageiros. Parintins ficou para trás, chegaria em Santarém, mais de 24hs depois da entrada no navio.
Num balanceio leve e tranquilo, protegido pela Curupira, Matinta, Pêrera e a Mani, as lendas protetoras, admirando o pôr do sol, distante meus olhos, meus pensamentos e alguém puxa conversa comigo “Você quer conhecer a minha ilha e minha família” (>).
Sem exageros e sem desmerecimentos, foi um dos convites mais envolventes que recebi. O resto é história já escrita e publicada.
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