Lembra-se dessa brincadeira de infância, que ríamos para entender qual era a senha da brincadeira? A letra inicial da primeira palavra dita era a senha para a resposta. Levaríamos objetos ou coisas ou pessoas que começassem com a mesma letra. Não me recordo se as minhas respostas incorretas atingiram meu ego, nem tampouco se sofri se ganhei ou se perdi. Confesso que agora Aristóteles me reprimiu. Fiquei não apenas na dúvida, fiquei sem respostas. Em uma viagem de barco, ainda no rio Amazonas, deitado em uma rede, olhando para o nada, sem nada pensar e sem nada querer, apenas esperando meu destino chegar, sou provocado por um passageiro de maca (também conhecido como usuário da rede). “Para onde você vai”? Bingo, como minha irmã sempre fala, converso até com plantas, assim, a conversa transcorreu facilmente. Acho até que o “provocador” estava mais carente de conversa do que eu. Januário é o nome dele, não perguntei a idade, mas beirava o sexagenário (idade boa). Não demorou 15 min. e o convite apareceu. “Não quer passar uma noite na minha ilha?” O barco vai parar lá, vou descer e você pode ficar na minha casa.” Demorou 15 segundos para o meu aceite. Uma resposta inconsequente e liberta, dois sentimentos que transfiguram qualquer viajante. Quem são essas pessoas e o que preciso levar para a ilha? Como o convite era para uma noite, achei que a minha mochila contemplava a ocasião. Sabia que precisava de pouco, mas o pouco era a ocasião. Nos momentos de reflexão antes da chegada na ilha, fiquei na dúvida entre uma roupa adequada ou uma lembrança para os anfitriões. Um protetor solar ou o agradecimento em ser recebido. Na prepotência de ter mais ou na humildade de reconhecer o quanto somos pequenos. Assim cheguei na ilha, 40 casas, não sei quantas pessoas, pouca luz, a única que iluminava nosso caminho até a casa do Januário, era da bondade. O relógio marcava dez e quinze da noite. Confesso que naquele momento, quando me apresentou à sua mulher e filha, sem ao menos anunciar uma semana antes da minha chegada, que ficaria ali para passar a noite, permaneci como uma esfinge. Da outra parte, os sorrisos dos ocupantes da casa se alegraram em saber e conhecer o “invasor”, fiquei com vontade de desistir. Não merece explicação! O que temia aconteceu, o quarto da filha, Maria Helena, agora era a minha cama e conforto na ilha. Uma casa de pau a pique, simples, como uma taipa de mão, mas confortável e amável por dentro. Um desses quartos, seria o meu por uma noite, a filha dormiria no chão, no quarto dos pais. Não adiantou eu recusar o quarto, os corações já confirmaram o que precisava acontecer. Como na visita ao museu, aceitei o convite para viver uma noite de núpcias, mesmo que estivesse só, mas rodeado de amor. Aceitei ficar lá para aceitar a minha insignificância, para (in)justificar meu egoísmo. Sim, tudo muito complexo entender como uma família vive e sobrevive com o que pesca e planta. Sim, famílias que não residem no futuro, que não temem a fome, não temem à solidão. Minha insônia transformou-se em um conto, não de fadas, mas existencial. Sim, os existencialistas nos ensinaram que fazemos escolhas o tempo todo e traçamos caminhos e planos, e assim, estamos prontos para escolhas e perdas. Martin Heidegger desenvolve a ideia de que o ser humano pode experimentar uma existência autêntica ou inautêntica. Fácil assim, difícil na prática. A prática para um “sobrevivente” é estar colado no seu amor, é precisar que a outra parte compreenda que a visita de um desconhecido é o refúgio do desespero. É a oportunidade da comparação, não da fuga da fome. Talvez a fome seja minha, mesmo com tantos alimentos na minha mesa; a fuga de não aceitar o outro, de viver em condomínios e não aceitar que o outro pode ser a sua salvação. Vivemos em uma ilha, temos dificuldades em aceitar isso. A visita transcorreu como em um hotel de luxo, com a diferença que não paguei nada, me senti um homem de sorte. Descobrir possibilidades de convivência talvez seja o caminho para um novo tipo de sobrevivência. Sair da “nossa” ilha, mesmo por um dia, pode ser devastador para nossas certezas e crenças. Sigo viagem.
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