Fazemos isso o tempo todo, com uma turma enorme de gentes, e para abreviar situações que queremos escapar
Uma amiga que é surda oralizada —se comunica com a língua portuguesa— expôs dia desses nas redes sociais o quanto é doloroso passar a vida toda ouvindo “deixa pra lá” daqueles que perdem a paciência em compreender o que ela tenta expressar, às vezes, precisando que se fale novamente ou com mais calma ou com a voz mais alta.
Senti um desconforto e uma identificação imediatos com o desabafo. Primeiramente, por já ter eu praticado o “deixa pra lá” com quem eu supus que não me compreenderia, logo, o melhor caminho seria interromper a troca. Cada um com seu cada qual.
Depois, veio a bigorna no peito ao pensar nas inúmeras vezes que deixaram de argumentar comigo, lascando um “deixa pra lá”, sorrateiramente atribuindo mentalmente a minha condição física de cadeirante uma inabilidade de compreensão.
Como é possível concluir tal disparate? Com os arremates das conversas, invariavelmente ligando a deficiência a uma falta de experiência de vida e práticas e projetando nela ultra sensibilidades que afetariam a compreensão do mundo cru e nu. Ah, e todo o mundo saca quando se é silenciado.
E fazemos isso o tempo todo, com uma turma enorme de gentes, e para abreviar situações que queremos escapar, evitar, ignorar, fazer de conta que não aconteceu.
Desistimos de falar com nossos velhos por serem cabeças duras e nunca estarem dispostos a mudar de lado. Assim, resumimos a conversa, fingimos que concordamos e… deixamos pra lá. O velho perde oportunidade de diálogo, o mais jovem perde, no mínimo, um bom causo.
Com as crianças não é diferente. Damos o vácuo a elas quando perdemos a paciência de explicar um conceito pela milésima vez e ignoramos a máxima da infância: a meninice adora uma repetição.
De tanto deixarmos para lá os pequenos, pode ser que não aprendam a andar de bicicleta, a entender de astrofísica, de cuidar das árvores e de dar conta de si mesmos.
A motivação da iniciativa, em parceria com a Faculdade de Medicina da USP, é conscientizar a população sobre os problemas de audição.
No amor, a gente “deixa pra lá” porque pode dar briga, o que tem lá o seu sentido no dia a dia em se tratando de questões triviais. Até faz parte do bem-querer. O problema é aquilo que de fato não se abandona no pensamento e volta, mais forte, cheio de interpretações e carregado de rancores.
Insultamos e inferiorizamos quem pensa diferente porque é melhor se economizar com quem tem cabeça dura e não irá alcançar jamais nossos incontestáveis e elevados valores. E a cada “deixa pra lá” nessa disputa, mais radicais ficam os lados, menos se cria o terreno da convivência entre as diferenças.
Às vezes, um “me explica melhor” pode ampliar em níveis surpreendentes nossa capacidade de ser mais receptivos, de ver além, de estigmatizar menos e de não criar situações de cortes nada lacanianos nas relações humanas.
Mas é reconfortante aplaudir as mulheres não deixando as meninas para trás nem os parlamentares seguirem à frente. Os negros não abandonando os debates de suas dores e de sua história. Os diversos não se encolhendo diante daquilo que os diferenciam. Não vamos deixar para lá.
Por Jairo Marques (FSP 18/06/24)
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