A gravidez é parente da gravidade, mas Júlio César não nasceu de cesariana
Quando entramos no jogo de procurar, por puro prazer estético, associações etimológicas entre palavras hoje distantes, é preciso ter cuidado para não cair no vício. É grave, doutor? Ou seria leviano?
Bem, o ancestral latino “gravis”, que quer dizer pesado, mora tanto na sisudez de um acadêmico gravíssimo quanto na barriga de uma mulher grávida, tanto na gravidade do estado de saúde de um acidentado quanto na atração da Terra sobre os corpos.
Ou seja: a gravidade recomenda manter os pés bem presos no chão, mas a atração gravitacional que a etimologia poética exerce sobre nossa curiosidade é grávida de promessas de vida renovada. No caso, a vida das palavras.
É verdade que muitas vezes dá um trabalho danado encontrar o fio da meada. O famoso general romano Júlio César não nasceu de cesariana, mas uma lenda etimológica de grande sucesso na Antiguidade ligava seu nome a tal tipo de cirurgia.
Foi por isso que, além de dar origem ao nome de soberanos em diversas línguas, como o alemão Kaiser e o russo tsar (ou czar), César acabou por levar os médicos franceses do século 16 a batizar de “césarienne” o parto por excisão. Lendas também fazem a máquina da linguagem rodar.
Mas nem sempre: na maior parte das vezes, crendices sobre a origem de palavras são só bobagens mesmo. Como aquela que jura que coitado é quem foi submetido a coito. Não é e nunca foi.
Coitado saiu do verbo latino “coctare” (atormentar, desgraçar), enquanto coito se liga a “coire” (literalmente ir com, quer dizer, fazer sexo com). Duas famílias inteiramente diferentes –e ainda nem mencionei uma terceira, a da palavra biscoito, descendente do verbo “cocere” (cozinhar), que também costuma ser jogada na salada por engano.
Recomenda-se ser compreensivo com a confusão. Afinal, não é um fato comprovadíssimo que o ostracismo trouxe do grego antigo seu parentesco com as ostras? Depois disso, o que será impossível no mundo da etimologia poética?
De fato, era usando conchas de ostra –ou cacos de cerâmica que levavam tal nome por metáfora, os estudiosos se dividem nesse ponto– que os cidadãos da velha democracia ateniense votavam pelo “ostrakhismós”, a suspensão dos direitos políticos de alguém.
E há casos ainda mais estranhos que também levam o selo etimológico de autenticidade. Explicar como o figo e o fígado vêm a ser parentes não é simples, exige voltar à expressão latina “jecur ficatum”, que significava “fígado (sobretudo de pato ou ganso) cheio de figos”, isto é, fígado de animais que se engordavam com figos para que ficasse mais saboroso.
Acontece que o nome do órgão era “jecur”, não “ficatum”. O resto vai para a conta da mania que têm os adjetivos de se substantivarem, como ocorreu com o (telefone) celular. De figoso ou enfigado (para inventar duas palavras), o órgão virou fígado só.
Embora sempre valha a pena, às vezes é mesmo difícil separar verdade de mentira no reino da etimologia poética. Como palavras nunca se deixam prender na cela de uma cadeia, sua liberdade pode nos atordoar.
Uma das principais razões disso é a capacidade que elas têm de escapar por meio do sentido figurado. Aquilo que –além de uma prisão, pelo aspecto funcional– nos faz derivar do latim “catena” (corrente de ferro) a cadeia como fileira de montanhas, reações físico-químicas em sequência ou rede de estabelecimentos comerciais, pela ideia de elos encadeados.
Por Sérgio Rodrigues (FSP 13/09/23)
Deixe um comentário