Difícil ter certeza sobre a que o presidente se referia com expressão ‘deficiência mental’
Ao relacionar ataques em escolas a pessoas “com algum problema de deficiência mental” e com “desequilíbrio de parafuso”, o presidente Lula demonstrou preconceito, ignorância e injustiça.
Difícil ter certeza sobre a que o presidente se referia quando usou a expressão “deficiência mental”, que acometeria, segundo dados creditados por Lula à Organização Mundial da Saúde (OMS), 15% da humanidade.
Poderíamos interpretar que ele quis dizer deficiência intelectual. Segundo o DSM-5 (o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais), a deficiência intelectual é um transtorno do neurodesenvolvimento que se caracteriza por “déficits em capacidades mentais genéricas, como raciocínio, solução de problemas, planejamento, pensamento abstrato, juízo, aprendizagem acadêmica e aprendizagem pela experiência” e “prejuízo na função adaptativa diária”.
Esse transtorno tem quatro níveis de gravidade (leve, moderado, grave e profundo), acomete cerca de 1% da população e necessariamente está ou pode estar associado a casos como autismo, lesões cerebrais traumáticas e síndromes genéticas, como a síndrome de Down.
O mais provável, no entanto, é que o presidente estava se referindo a transtornos mentais, um termo guarda-chuva
Nos diz o DSM-5 que transtorno mental “é uma síndrome caracterizada por perturbação clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental”, como os transtornos do neurodesenvolvimento (aí incluídos a deficiência intelectual e o autismo), transtornos bipolares, depressivos, alimentares, da personalidade, entre outros.
O próprio DSM faz a ressalva de que “desvios sociais de comportamento (por exemplo, de natureza política, religiosa ou sexual) e conflitos que são basicamente referentes ao indivíduo e à sociedade não são transtornos mentais a menos que o desvio ou conflito seja o resultado de uma disfunção no indivíduo, conforme descrito”.
A estimativa da OMS é que uma em cada oito pessoas (ou seja, 12,5% da população mundial) viva com algum transtorno mental.
Por outro lado, dados recentes indicam que só 25% dos assassinos em massa e atiradores nos Estados Unidos tinham exibido ter uma doença mental ou tinham diagnóstico conhecido de doença mental.
“Não existe uma relação direta demonstrada entre esses atos de violência e os transtornos mentais. Mais do que isso, mesmo quando os transtornos mentais estão presentes em casos de violência como esses, eles não são o fator predominante, existem outras variáveis que são muito mais relevantes. Até porque temos uma quantidade enorme de pessoas com transtornos mentais e isso não implica em nenhum ato desta natureza”, diz Lucelmo Lacerda, doutor em educação e pesquisador em autismo e inclusão.
A ignorância e o preconceito, misturados ao senso comum sem base em evidências, são uma combinação perigosa para a intolerância, o que ficou evidente nos últimos anos, no Brasil.
Lacerda diz se importar menos com as expressões usadas pelo presidente do que com esse impacto potencial da associação do transtorno mental com atos de violência.
“Esses indivíduos, em especial o indivíduo com o transtorno do espectro autista, sofrem especialmente com o bullying escolar, que é um ato repreensível pela sociedade, mas que continua acontecendo. Essa associação [com a violência] pode estabelecer uma outra relação — muito mais violenta, que não é só com outros estudantes, mas com a comunidade escolar como um todos, [incluindo] professores, pais —, uma visão social, institucional, de quase prévia criminalização desse público.”
Raquel Del Monde, médica especialista em autismo, avalia que a fala do presidente foi capacitista e ofensiva. “Foi decepcionante. As pessoas com deficiência estavam com uma esperança maior agora de sair de um lugar de segregação. Vindo de um líder é muito complicado e mostra a necessidade de a pessoa se informar um pouco mais. E de se retratar, porque teve uma repercussão muito grande e ofendeu muita gente.”
Chamo a atenção para como a fala do presidente Lula é, também, injusta.
Muitos desses 12,5% da população com transtornos mentais se desdobram, manhã, tarde e noite, para participar da vida em sociedade, da vida em família, para conseguir estudar, fazer amigos, trabalhar e superar cotidianamente preconceitos como o da falta de parafusos. E para, apesar das dificuldades, seguir vivendo uma vida tão legítima quanto a de um homem eleito três vezes presidente da República.
Como disse Lula, podemos estimar esse grupo em quase 30 milhões de brasileiros. Mas essas pessoas não são potenciais assassinos. Elas são potenciais alvos de políticas públicas de saúde, educação, assistência social, trabalho, cultura e emprego. Políticas em que o Estado historicamente falhou. E segue falhando.
Johanna Nublat (FSP 20/04/23)
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