Na vida da pessoa com deficiência, subverter lógicas da existência faz parte
“Pai, tá tudo bem? Você está demorando, estou um pouco preocupada”, dizia biscoita —minha filha Elis, de sete anos— em um áudio de zap, com a voz meio tensa. Ela tinha certa razão.
Demorei mais do que o previsto no “Achados e Perdidos” do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, onde fui em busca de uma famigerada bolsinha, com a chave da charanga, que havia esquecido na inspeção de segurança, cinco dias antes. Deu tudo certo, mas o meu achado estava meio perdido no local, daí, o meu atraso.
Enquanto fui, ela ficou sozinha no saguão, rodeada de mochilas, ouvindo músicas de TikTok com fones de ouvido da Dora Aventureira. Não era o ideal deixá-la assim, mas era o possível para nós dois.
Aos poucos, tenho notado que minha neném assume cada vez mais cuidados comigo, o paizão cadeirante que ela auxilia fazendo graça, sempre com um sorriso maroto na cara, muito com um sentido de companheira e nada como obrigação ou peso, por enquanto. Ela ajudou muito ficando no saguão.
Minha menina já consegue me ajudar a tirar a cadeira de rodas do carro e a montá-la. Não titubeia a perguntar quando estamos caminhando por aí: “Quer carona, pai?”, a forma como aprendeu a perguntar se preciso que me empurre em algum terrenos mais complicado ou quando nota que já estou cansado de levar a vida sobre rodas.
Eu sabia que, aos poucos, ela iria assumir pequenas demandas diante as minhas capacidades mais limitadas. Que seria tão cedo? Não imaginava. Parece meio duro de ler e de entender? Acho que sim, mas é natural, quase como o movimento dos filhotes atrás da mamãe pata que atravessa a rodovia movimentada cuidadosamente.
Letícia, uma amiga também cadeirante, comoveu as “internets” com um vídeo mostrando a filha, Clarice, dando uma mãozinha para ela botar um vestido. Na legenda, ela escreveu, em tom de total brincadeira: “O retorno do investimento”.
Na vida da pessoa com deficiência, subverter lógicas da existência faz parte. A gente morre um pouquinho com essa mistura de papéis, mas, ao mesmo tempo, parece que ficamos mais atados a nossas crias.
Para ajudar na minha piração, não paro de pensar em Aftersun, filme com indicação ao Oscar deste ano. Quando amadurecemos, quando o sol vai embora, podemos mudar o olhar para nossos pais. O que era invisível aparece, o que era prazer pode virar tormenta, o que não incomodava passa a nos perturbar.
Será assim com minha biscoita, com minha pitchuca que hoje se alegra quando peço ajuda parar carregar o balde de pipoca no cinema? Será que Clarice, no futuro, terá um “coração selvagem” diante das necessidades mais prementes da mãe?
Mas, por causa dessas contradições bem humanas, numa noite dessas qualquer, enquanto eu fazia um lanchinho, lia algumas notícias no celular e, ao mesmo tempo, pensava sobre este texto, Elis olha pra mim, esparramada no sofá, com uma preguiça daquelas bem gostosas de sentir, e me pede:
“Pai, você pode parar de comer e pegar um copo com água bem geladinha pra mim, por favor? Não consigo levantar agora”. Então, é isso. Ela é apenas uma criança espevitada, filha de um cara que pensa demais.
Por Jairo Marques (FSP 28/02/23)
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