Quem é você na fila da serpentina?
Mal pisamos no bloco e, feito Maomés, dividimos mentalmente o mar de gente entre homens e mulheres. Avaliamos automaticamente a faixa etária, a classe social, a dita raça e por aí afora. A partir dessas coordenadas, separamos o desejável do indesejável ou perigoso demais. Classificar o outro é uma estratégia para tentar garantir quem somos na fila da serpentina.
Nos sentimos feios numa festa de gente linda, mais ou menos jovens a depender da média de idade, ricos ou pobres conforme a ostentação. Ao classificarmos quem são os outros, buscamos esquecer que nosso eu tem a firmeza de um pudim.
Acontece que o Carnaval é um jogo de pistas falsas, no qual as coordenadas estão propositalmente embaralhadas, seu frisson passa pela suspensão dos parâmetros conhecidos. Como escreveu Assis Valente: “Beijei na boca de quem não devia, peguei na mão de quem não conhecia”. O fato de ter data para acabar permite que a brincadeira corra solta. Salvo casos notórios, a ressaca moral não alcança a festa do ano seguinte.
Mas e se os marcadores que nos ajudam a saber quem somos se tornassem permanentemente borrados também no resto do ano, explicitando a qualidade gelatinosa do que chamamos de eu?
“Traídos pelo Desejo”, de Neil Jordan, escancara o choque do encontro com o desejo quando as balizas de gênero são suspensas. Desejar algo diferente do que a vontade consciente nos impõe é estranhar-se, portanto a coisa não vai sem angústia. E, com ela, a oportunidade de ouro de lidar o que paira em nosso inconsciente.
Riobaldo amava Diadorim sem saber o que se revelaria sobre a segunda. Se a imaginava homem, qual foi o traço distintivo que capturou o jagunço? Desejar alguém sem saber o que está sob o figurino nos obriga a admitir que o desejo sempre se dá alhures
É isso que os jovens explicitam quando demonstram que gênero e orientação sexual são bordas fluidas, e não muros. São pessoas cujo corte de cabelo, barba, roupa, maquiagem, trejeitos nos deixam sem saber qual pronome lhes cabe. Perdemos as marcações que nos permitiam ler, não sem erros crassos, nosso lugar no páreo da disputa amorosa. Sem saber em que caixinha colocar o outro acabamos nos sentindo fora da caixinha.
A heteronormatividade escamoteia o fato de que o amor entre homens e mulheres não esclarece o que se ama em cada homem ou em cada mulher. Ela promove a falsa ideia de homogeneidade do desejo.
Ao revelar a inconsistência do desejo, os jovens promovem angústia e recebem como resposta inúmeras violências. Entre elas, a nostalgia de um tempo em que a ditadura buscava controlar o irrepreensível do desejo humano. Período no qual corpos ficavam à mercê de tarados que mal disfarçavam o gozo que extraíam da tortura. O gozo disfarçado de ordem e progresso é um exemplo típico do prazer perverso, que se dá à revelia do desejo do outro.
O Carnaval parte da premissa oposta: da liberdade de ver e ser visto, de desejar e ser desejado, onde não pode existir nenhum espaço para o abuso ou para a sujeição. Ele é o antídoto aos porões, é a celebração da vida e da sexualidade que nos move. A festa de Momo fere o moralismo na mesma medida em que é sustentada pela ética do desejo e da responsabilização absoluta sobre quem se pode ser.
O Carnaval é o futuro.
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