Vida sem sofrimento não tem, mas há formas piores e melhores de encará-lo
Uma dica é admitir que a consciência, que é uma ferramenta recém-adquirida pela humanidade, está fadada a fracassar em suas pretensões iluministas. Se a intenção for dar conta da experiência da vida apoiado na capacidade de atribuir-lhe sentido, melhor enfiar a viola no saco. Foi na tentativa de tudo entender, controlar e predizer, capturados por excessivas promessas da ciência, que nos perdemos. Para escapar da máquina de pensar, disparamos no uso de drogas. Entre encontrar “o” sentido da vida ou vivê-la, sugiro investir na poesia.
Lacan inicia seu primeiro seminário publicado com uma alusão à técnica budista de ensino, na qual o mestre ajuda o discípulo a desapegar da razão. Termina o mesmo entregando à audiência figurinhas com a imagem de um elefante. Em interpretação livre, diria que ele aponta para o fato de que tem “aquilo”, a teoria sobre a qual podemos discorrer longamente, e tem “isso”, que nos escapa. O “Isso”, verdadeira matéria da psicanálise, é o outro nome do inconsciente. O que escapa ao sentido não deveria nos acabrunhar, mas entusiasmar. A condição é não nos levarmos muito a sério.
Outra dica é admitir que sem o outro não dá. Não apenas porque o isolamento mina nossas forças, mas porque nunca estamos inteiramente sós. O diálogo interno implica um outro que nos habita, nos julga, adula e recrimina. Paradoxalmente, pode-se dizer o oposto também: nunca estamos verdadeiramente acompanhados pela impossibilidade estrutural de compartilhar a experiência.
O encontro com o outro pode confirmar nossas péssimas expectativas, mas também pode nos surpreender. Como quando percebemos que todos os amores da nossa vida foram horríveis, exceto um. E justo esse, que escapa à série, pode acabar levando a bronca que cabia aos anteriores, justamente por contrariar experiências e expectativas. O encontro com o outro tem desses embaraços e deleites.
Quando o outro nos deixa —voluntária ou involuntariamente— nos expõe a um dos maiores entraves de qualquer relação, que é o medo de sofrer, claro. A técnica de se isolar para não sofrer seria boa se funcionasse, mas o isolamento é fonte de inesgotáveis sofrimentos compartilhados no divã. Vivemos o paradoxo das relações humanas incrementado pelas agruras da era midiática. As ferramentas que poderiam nos aproximar magicamente confirmam que não há tecnologia que resolva o infantil em nós que permanece ainda que a infância chegue ao fim. Mais do que aproximar, as mídias têm promovido sofrimento em escala global e instantânea.
Tem também a dica de cuidar. Não esse cuidado compulsório imputado às mulheres para fins de desoneração da responsabilidade dos homens. Mas o cuidado que emerge do reconhecimento de que o outro é feito da mesma massa que nós. Cuidar e ser cuidado é a dobradinha de ouro rumo à civilização, que parece cada vez mais distante.
Por fim, mas sem esgotar o tema, vá ao teatro. Por quê? Pois se trata da principal experiência coletiva na qual o outro nos invade tentando ultrapassar, pela poética, nossa obsessão pelo sentido. O teatro tem algo embaraçoso, que ultrapassa o cinema. O corpo a corpo com os atores em tempo real —com direito a falhas e ao constrangimento de se deixar emocionar e ser visto por quem te emociona— enaltece nossa fragilidade ao invés de escamoteá-la.
Um governo com pretensões de cuidar, acolher e escutar nossa humanidade tem o dever de investir nas artes. A prova é que todos os governos fascistas, sabendo ou intuindo o que está em jogo, perseguem os artistas.
Fica a dica.
Por Vera Iaconelli (FSP 06/09/22)
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