A falta de convívio e interação entre crianças com e sem demandas sensoriais, físicas e intelectuais ainda gera uma lacuna imensa de entendimento a respeito de diversidade
“O que foi que aconteceu com você?”, me interroga um garoto de uns nove anos de idade quando entro no elevador com minha filha biscoita, que se adianta à investida curiosa do menino com uma resposta para me encher de orgulho: “Não foi nada. Meu pai é assim, cadeirante desde a infância”.
O moleque, naturalmente, não se convenceu e seguiu entregando aquilo que ele, certamente, recebeu dentro de casa, reproduzindo o estranhamento à minha diferença que o incomodava e o comovia. “Ele tem uma doença, né? Deve ser difícil… vou rezar pra você, viu, tio?”.
Entreolhei Elis que, novamente, não se conteve à comoção do garoto e, sorrindo, tascou um “reze para quem precisa de ajuda. Meu pai está ótimo, ele não precisa de cura. Tchau, vamos comprar pipoca”.
Obviamente que senti aquele quentinho no coração vendo minha filha, na prática, crescer toda trabalhada nos valores inclusivos, mas treinar novos olhares e atitudes exige lições diárias e contundentes.
A falta de convívio e interação entre crianças com e sem demandas sensoriais, físicas e intelectuais ainda gera uma lacuna imensa de entendimento a respeito de diversidade, o que desemboca em adultos com olhares carregados de conceitos distantes da realidade e, muitas vezes, cheios de conceitos equivocados e discriminatórios.
Estamos condicionados a vislumbrar formas humanas supostamente harmônicas, completamente funcionais, que carregam conceitos estéticos condizentes com seres lavados com água de rosas e muito bem passados.
Ter um corpo com deficiência é a contramão disso, é mais ou menos como saem os primeiros rabiscos das crianças quando tentam desenhar pessoas, as pernas podem ser bem finas, o tronco encurvado, o maxilar reposicionado, os olhos desencontrados, os braços alheios a qualquer lógica de tamanho e de forma.
Afora esse diálogo imagético, pessoas com deficiência podem ter um andar cambaleante, a fala anasalada, manifestações de movimentos atípicas, um pouquinho de baba saindo do canto da boca e uma infinidade de maneiras pouco convencionais de se manifestar no mundo.
O primeiro passo para treinar o olhar é prático e vem antes de qualquer demonstração de humanidade, de paz e amor, de ser bonzinho. É não ter medo do que você considera novo. É pensar rapidamente naquilo que você esconde para se “normalizar” e entender que nem todos seguiram por esse caminho e que, para estar em algum lugar, alguns terão de levar e mostrar suas diferenças.
Um segundo passo exige ligeira introspeção. Cegos, surdos, paralisados cerebrais, autistas, afásicos, pessoas com síndrome de Down possuem desejos, aspirações, expectativas e são tamponados em toda essa essência por barreiras de atitude, físicas e de oportunidades. Então, é o João e sua condição, a Maria e sua condição, a Sofia e sua condição. É tudo gente, mesmo, que quer só viver.
Por fim, tente admitir se o nanismo, a tetraplegia ou as sequelas de uma desgraceira qualquer de alguém incomoda você e seus valores. Se chegar a essa conclusão, é importante admitir também que isso pode ser chamado de preconceito e suas demonstrações restringem, bloqueiam e até inviabilizam existências. Assista ao documentário “Crip Camp: Revolução pela Inclusão“, vai ajudar bastante.
Jairo Marques (FSP 11/05/22)
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