Em questões de língua, é mais fácil mandar do que ser obedecido.
A história da palavra “paraolímpico”, que a esfera esportiva oficial tenta substituir por “paralímpico”, ilustra de modo fascinante os caminhos da língua e os limites do poder de quem busca regulá-la.
Espera aí —fascinante? Que fascínio pode haver numa variação de grafia que não altera o sentido e que pouco significa diante da grandeza dos jogos disputados neste momento em Tóquio?
Bom, para quem se interessa pelo funcionamento das línguas, a prova em que se enfrentam paraolímpico e paralímpico permite acompanhar um embate que simboliza muitos outros.
Falo das disputas em que, quase sempre com fundo político, grupos de pressão tentam moldar palavras segundo seus interesses. Ao fazer isso, enfrentam com graus variados de sucesso uma vontade coletiva que é meio amorfa, e por isso mesmo poderosa.
Em 1960, 400 atletas disputaram em Roma, em versão oficiosa, os primeiros jogos da modalidade, chamados então de modo geral —e por aqui exclusivamente— de paraolímpicos.
Natação – Carol Santiago – medalhista de ouro nos 50 m livre classe S13 e 100 m livre classe S12; prata no revezamento 4 x 100 m livre 49 pontos; bronze nos 100 m costas classe S12 Alê Cabral – 29.ago.21/CPB
O neologismo era formado pela união do prefixo de origem grega “para-” (de paraplegia) com olímpico. No início, os atletas eram todos cadeirantes.
Desde então o movimento paradesportivo se expandiu e trabalha para obliterar a relação original com a paraplegia —o que é compreensível, mas não apaga a história.
A certa altura passou a constar no site do Comitê Paralímpico Internacional que a palavra “significa que os Jogos Paralímpicos se realizam paralelamente aos Olímpicos e ilustra o modo como os dois movimentos existem lado a lado”.
Embora haja especulações sobre uma tentativa de fugir de “olímpico” como marca registrada, não é claro por que em 1989, ao ser criada, a entidade máxima do setor adotou a contração no nome —em inglês, “paralympic”. O fato é que a impõe desde então às afiliadas mundo afora.
O êxito era previsível, considerando-se seu poder. Fundado em 1995, o Comitê Paraolímpico Brasileiro foi um dos que mais resistiram. Fiel à palavra original até 2012, anunciou no encerramento dos Jogos de Londres que em quatro anos seriam disputados os “Jogos Paralímpicos” do Rio.
Caía um bastião. Em Portugal, “paralímpico” era a palavra vencedora —no campo oficial— desde a fundação da entidade nacional, em 2008. Para tanto, o Instituto do Desporto contrariara um parecer encomendado à linguista Margarita Correia.
“Será mais consentâneo com a estrutura da língua portuguesa (…) que o termo em causa mantenha a vogal inicial ‘o’ da palavra ‘olímpico’”, observou ela.
Disse o óbvio, e isso não vale só para o português. Se contração houvesse, mais natural seria a forma “parolímpico” (veja-se, por exemplo, “paroxítona”). Paralímpico não soa bem —o que, longe de denotar purismo, é pura afinação do ouvido com os usos da vida real.
Essa deficiência linguística de “paralímpico” ajuda a explicar por que, apesar da musculatura das entidades dirigentes numa área dependente de amparo oficial e ainda em construção, a forma “paraolímpico” permanece viva.
Esta Folha a adotava, assumindo posição minoritária na imprensa nacional e internacional —até esta quarta (25)! Acaba de se render também. Lamento.
Que bom que há Houaiss, em que “paraolímpico” é a forma preferencial, e o Vocabulário Ortográfico da ABL, que nem reconhece “paralímpico”. Para não mencionar incontáveis falantes.
Ajudam a gente a lembrar que, em questões de língua, é mais fácil mandar do que ser obedecido. Ainda bem.
Por: Sérgio Rodrigues (FSP 26/08/21)
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