Elas não param de falar com a gente, mesmo em silêncio, mesmo sonolentas e cheias de tédio. O exercício de escutar e de tentar entender os gritos e sinais de desespero das crianças nunca foi tão urgente.
Se as mudanças drásticas no modo de viver por estes tempos têm cobrado dos adultos valores emocionais muito altos, elas têm também dramatizado a infância, com o agravante de que nem sempre a verbalização das dores e da angústia ser clara e possível para os pequenos.
O que sempre foi tido como manha pode ser um apelo, o que víamos como frescurinha boba pode ser um chamado vindo de um sofrimento contido, mas perturbador.
O caso Henry, tanto como os outros diversos relatos escabrosos da violência praticada contra meninos e meninas pelo país ultimamente, escancara a necessidade de aperfeiçoarmos a escuta das crianças que nos rodeiam.
Obviamente o sofrimento do garotinho do Rio tem nuances e características específicas, que flertam com questões de valores humanos, de relações partidas e novas relações remendadas e de insanidades, mas o alerta para que se amplie o escutar das angústias das meninas e meninos reverbera em todas as casas.
A mistura dos ambientes de trabalho, escolar, de lazer e de convívio, por exemplo, tem o potencial de nos hipnotizar em certas demandas ao mesmo tempo que nos faz negligenciar outras. A divisão confusa do tempo pode deixar a criança, em vários momentos, sozinha com seus botões, com seus dramas e com seus gritos.
Isso acomete a todos —ao menos aos que têm a mínima responsabilidade coletiva—, mas, naturalmente, o descambar para a violência não se impõe como regra, embora também os apelos emocionais não atendidos possam ser considerados como uma forma de violência.
Hoje, a inquietação, os ligeiros relatos e as frases questionadoras, os chamados incessantes de filhas e filhos precisam ser considerados com mais carinho e atenção do que em tempos não pandêmicos. Os mais velhos têm aprendido a respirar mais, a fazer ioga, a procurar um terapeuta, mas e a criança?
Geralmente, seus conflitos da mente e da alma deságuam de maneira mais cifrada, mas não menos dolorosa.
O drama de Henry envolveu vômitos, recusas de afeto, berros incontidos, apegos a pessoas de fora do núcleo familiar. O não acolhimento efetivo a seus apelos culminou em uma tragédia que repercute em toda construção “papai, mamãe, filhinho”, dentro de qualquer variação de diversidade possível.
Mas é fundamental ampliar a consciência de que há um coro de gritos infantis em curso. E não é exagero. A falta de interação com a rua e com os colegas, assim como a ausência de perebas vindas do contato com a terra —ou com o concreto—, a carência de agenda para as festinhas, brincadeiras de pega-pega ou de tardes de videogame com os primos, é duríssima e séria.
É preciso juntar tudo isso com as questões que não são das crianças, mas que incidem diretamente na realidade delas: a crise econômica, as mortes que nos rodeiam, os conflitos entre os casais, os medos do presente, a falta de alguma clareza sobre o futuro.
Já existem traumas em demasia a serem enfrentados pela geração que cresce sob o impacto do coronavírus em seus escorregadores e abraços fraternos. Dos vários esforços que somos chamados a empreender neste momento, dedicar mais compreensão aos gritos da molecada é amparar o destino do que representará a própria humanidade.
Por: Jairo Marques (FSP 28/04/21)
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