Duas séries recentes, Soulmates (Amazon) e The One (Netflix), abordam temáticas muito semelhantes: os dilemas, delícias e complexidades de poder encontrar, com método científico, sua alma gêmea, aquele “serumano” ideal, que não liga para o seu bafo matutino e lhe desperta desejo até cortando as unhas dos pés.
São diversas as experiências e histórias da carochinha contadas em prosa, verso e música do Fábio Jr. relatando as maravilhas de esbarrar com aquela pessoa capaz de fazer uma chuva de canivetes se transformar numa brisa de algodão-doce, aquele amado incansável em companheirismo, compreensão e tesão que chega para nunca mais ir embora.
As reflexões contidas nas séries, embora superestimadas e levadas ao extremo das situações —como o de saber que sua alma gêmea é um assassino sanguinário—, ajudam a pensar em como esse tão almejado encontro romântico pode não ser assim tão iluminado e cheio de coraçõezinhos.
Guardamos experiências próprias, laços emocionais únicos, vivências e momentos exclusivos todos os dias e é com essa bagagem nos sentimentos e na cabeça que partimos rumo às nossas buscas e desacertos afetivos.
Muitas vezes, por acreditar demais que a tampa da panela precisa se encaixar perfeitamente em nossas ambições e sonhos, perde-se a oportunidade de aproveitar aromas, sabores e texturas que o curso natural dos dias vai apresentando com caçarolas meio amassadas ou até meio enferrujadas.
Um aparte inclusivo aqui: pessoas com deficiência, como é o meu caso, costumam ter, aos olhos alheios, não almas gêmeas a seu lado, mas almas caridosas, almas elevadas, almas puras, capazes de dividir o fardo de condições físicas, sensoriais ou intelectuais incomuns, o que é uma enorme bobagem, evidentemente.
Encantos, atração, conexões se dão por construções de cumplicidade e dedicação que se aprofundam não por meio das perfeitas manifestações do corpo e de habilidades sensoriais, mas por elementos mais simples —ou, talvez, bem mais complexos— como a maneira de encarar os desafios, a energia que se dá ao acolher alguém ou a forma como você trata uma criança.
Das dezenas de lições pandêmicas possíveis, compreendo que uma é justamente potencializar os conceitos de almas gêmeas, saindo do campo meramente romântico e olhando mais para ligações de empatia, de acolhimento e de prazeres que podem sustentar a mente, a alma e aplacar angústias, inquietações e medos.
Desse modo, um amigo que consola, que alegra, que liga à noitinha para te fazer companhia e para te adoçar as amarguras —e também para receber de você carinho e consideração—, tem grandes chances de ser uma alma gêmea.
Aquele seu cachorro carentão, que fica embaixo da mesa babando e se coçando enquanto você se desespera porque não ouve nada da reunião online, pode ser uma alma gêmea das mais sintonizadas. O mesmo vale para seu gato que dorme à espreita na porta enquanto você toma banho.
Os maiores parceiros da existência podem ser nossos filhos que falam “eu te amo” após pedirmos umas cem vezes, mas que sempre falam. Podem ser, neste momento, profissionais de saúde que amparam nossas dores e desesperos até o fim.
Quanto mais estendermos as possibilidades de afinidades e acalentos que podem nos completar, nos consolar e nos empurrar para mais um dia e suas esperanças, menos ficaremos na inquieta dependência de achar que apenas um ser iluminado, perfeito e parceiraço, que talvez nem exista fora da imaginação, irá nos realizar.
Por: Jairo Marques (FSP 14/04/21)
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