A gente se adapta a tudo: à falta de água, às despirocadas do Bolsonaro e sua turma, a ficar em casa sem botar o nariz para fora, à dor que substitui um amor, a uma casa bem pequena, a um problema bem grande, a uma dor constante.
Não há problema em assumir mudanças transitórias, improvisar condições para seguir adiante. A questão é quando vamos aceitando os fracassos e as perdas e nos resignando a apenas sobreviver, é quando abrimos mão do sonho e nos adaptamos à chegada do fim do mundo
Em uma instigante entrevista realizada pelo genial David Letterman disponível na Netflix, ele pergunta ao ator Robert Downey Jr. por que ele, o “homem de ferro”, ainda tem esperança de salvar o planeta, ainda aplica tanto dinheiro em causas ecológicas, por exemplo, se tudo indica que vamos, em um breve espaço de tempo, botar tudo a perder e só o que nos restaria seria nos adaptarmos à chegada do apocalipse.
O ator, sem titubear, responde que a definição de um otimista é alguém que acredita que o futuro é incerto. E segue dizendo que o pessimista é alguém que sempre tem razão, mas não obtém satisfação.
Downey Jr. termina dizendo que é mesmo necessário adaptar-se ao que virá, às mudanças em direção às quais caminhamos a passos largos. Otimista que é, afirma que tentar transformar atitudes em busca de uma vida melhor não é tarefa impossível.
Para variar, dei uma pirada pensando na ideia de que admitimos —mesmo sem consciência exata do que estamos fazendo— abrir mão de muito do que nos dá conforto e qualidade na vida para simplesmente acordar pela manhã, do jeito que dá.
Isso acontece quando a gente respira menos porque a fumaça nos sufoca, trabalha o dobro porque nosso chefe é um assediador, deixa de acreditar porque um santo não fez milagre, quando participamos de uma aglomeraçãozinha porque, afinal, a morte está aí.
Mas adaptar-se não poderia significar indispensavelmente criar condições para se sentir mais acomodado. A definição se aproxima mais daquilo que é o possível em dado momento, mas está longe do que é justo, aceitável, “certo”.
Em minha trajetória cadeirante, quantas vezes tive de me adaptar ao cantinho para poder estar presente, de aceitar ser carregado no braço para poder chegar ou de me acostumar a ver as coisas do lado de fora para não deixar de vê-las?.
Tive de participar como café com leite para jogar, tolerar inverdades sobre aquilo que achavam de minha condição para, de alguma maneira, pertencer a um grupo. Subir uma rampa adaptada invoca insegurança, jeitinho, mas nem por isso se perde de vista a possibilidade de que o futuro venha a ser acessível, de que em algum momento se promoverá a inclusão, o cenário perfeito para todos.
Logo, quando a gente assume arranjar o que for possível para o avanço e a chegada das intempéries, estamos, de alguma maneira, aceitando a “sorte” e abrindo mão daquilo que nos traria mais plenitude, satisfação e felicidade para somente levar a pança para a frente.
Cada vez mais, em vários setores e situações, aceitamos anestesiados que temos de nos adaptar ao fim do mundo e perder prazeres em troca de mais um dia “marromenos”.
Revisitar nossos contratos, nossas atitudes, nossa maneira de levar a carcaça, talvez, não nos dê grandes esperanças de um céu azul, de um Pantanal sem fogo, de um Brasil mais honesto, mas, quem sabe, faça demorar mais para que simplesmente aceitemos passivos que fenecemos.
Jairo Marques (FSP 28/10/20)
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