Jairo Marques
Convivo com muitas pessoas que guardam em si enfermidades que vão levando, devagarinho, mas de forma constante, as possibilidades de saracotear livremente pela vida. A amizade, as trocas de experiência e a labuta por inclusão, muitas vezes, fazem os mais próximos perderem a noção de possíveis breves e repentinas finitudes desses chegados.
Eu o chamava “Leozim”, por carinho, embora ele fosse superlativo em várias de suas características, na personalidade e também na juba, entre o ruivo e o loiro, que deixava criar em alguns tempos.
Chegava com uma voz mansa e baixa perto de mim, na Redação da Folha, onde foi trainee e repórter, a bordo de sua cadeira de rodas motorizada, ajeitava os óculos e disparava com timidez e firmeza:
“Gostei muito daquele texto que você escreveu sobre sexo e os ‘malacabados’. Precisamos pensar mais seriamente na questão do prazer das pessoas com menor mobilidade, das pessoas com deficiência. Ainda bem que você sempre se lembra dessas bandeiras”.
Se eu me lembrava de uma flâmula ou outra relativa ao universo da inclusão e da diversidade, o Leozim era a personificação da ação, era ele quem a levava para as ruas.
Sem soltar um grito, mobilizou a Escola de Comunicação e Artes da USP em torno da discussão de que nenhuma faculdade é tão boa assim se ela não é capaz de atender bem todo “serumano” que nela pisa ou roda. De lá, saiu doutor.
Assim como outras pessoas que vão se esvaindo dia a dia pela força da herança dos genes, o Léo tinha em si um poder que é de poucos: se reclamava, nunca era de sua condição, mas das falhas do mundo; se chorava, era pela emoção gerada pelos outros e não pela força de seus retratos; se inspirava alguém, desviava o olhar para uma causa plural.
Penso que neste tempo, com todos guardados dentro de casa, estamos experimentando alguma perspectiva mais próxima da vida curta do meu amigo Léo: muitos “assim não pode”, “assim não dá”, “assim é perigoso”, “limite-se a ficar neste quadrado”.
Não que ele se privasse de prazeres; muito pelo contrário, ele sempre se expôs. Mas uma condição diferente impõe ao vivente os sabores e dissabores de ter de olhar e habitar sua aldeia também de maneira diferente, nem sempre em meio a delícias.
Enquanto, cada vez mais, o corpo do Léo ia tendo a musculatura paralisada, mais força ele parecia ter para enfrentar a indiferença para com o respeito às múltiplas formas de poder viver e de ser feliz.
Talvez por isso ele fosse um “arroz de festa”. Não perdia nada, era sempre um dos primeiros a chegar. Talvez a presença tão forte do meu amigo em todo lugar tenha sido prenúncio de sua despedida num lampejo, que, pelos tempos de coronavírus, obrigou a família a dar um adeus restrito.
Mas sou convicto de que meu amigo defenderia, até o fim, o melhor para todos em vez de um agrado a si. Não porque fosse um ensaio de querubim, mas porque era um raro humano.
Leonardo Feder assistiu a um pouco da promessa de uma humanidade mais atenta e solidária. Tinha lá seus ceticismos, mas cria que tínhamos jeito.
De repente, sem alardes, com o silêncio da sabedoria e da resiliência, Leozim foi a um canto da casa e seu coração parou, sem alerta.
Num momento de tantas perdas, sentir no peito um coração pulsante, perceber a mente atada ao que se ama, deveria ser uma obrigação. Rever privilégios deveria ser uma obrigação. Afinal, nem todos teremos a chance de simplesmente ver o batucar cardíaco parar de relance. Ele pode sacudir todos nossos órgãos para nos acordar do que estamos perdendo.
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