por João Pereira Coutinho
Que deveres têm os jovens para com os mais vulneráveis ao coronavírus?
Tempos de peste são bons para a filosofia. O novo coronavírus não é exceção.
Se você é jovem e saudável, há poucas razões para temer o bicho. Mas se você é velho e doente, o caso muda de figura.
Surge o dilema: os jovens e os saudáveis não pertencem ao “grupo de risco”. Mas, como agentes de contágio, eles são um risco para quem pertence a esse funesto grupo. Que fazer?
Viver a vida sem temer a doença? Ou colocar a vida em suspenso por respeito aos pais, aos avós e aos vizinhos?
No fundo, que deveres têm os mais jovens para com os elementos mais frágeis da comunidade? Aliás, ainda faz sentido falar em “deveres” quando a cultura ao redor se especializou na gramática dos direitos?
O Wall Street Journal levanta um pouco o véu: o novo coronavírus trouxe uma guerra geracional entre jovens e velhos. E os primeiros, nos Estados Unidos e na Europa, não parecem particularmente receptivos aos receios dos segundos.
A chanceler Angela Merkel, depois de admitir que 70% da população alemã pode ficar infectada, acrescentou: pensem nos vossos avós.
Pois bem: vários netos, na reportagem do jornal, declaram que os constrangimentos sociais que as autoridades aconselham ou impõem (isolamento, quarentena etc.) são “desproporcionais” —e que os jovens são as principais vítimas da pandemia. “Não nos deixam viver!”, diz um deles, aparentemente indiferente ao fato dos pais e dos avós não quererem morrer.
O fenômeno não é novo. Muito menos um exclusivo dos “millenials”. Em 1979, um autor hoje esquecido já se tinha ocupado dessa “cultura do narcisismo” que era dominante nos Estados Unidos —e, por contágio, na Europa.
O nome é Christopher Lasch, o título do livro dispensa explicações (“The Culture of Narcissism”) e a tese do filósofo, que reli por esses dias, começa por ser surpreendente: a cultura do narcisismo, ao contrário do que os conservadores imaginam, não começou com a geração dos “sixties”.
Pelo contrário: a contracultura dessa década ainda exibia alguma “consciência comunitária” na ambição quimérica de construir um mundo melhor para todos.
É perante essa impossibilidade que, na década seguinte, o narcisismo tomou conta dos estábulos. E em que se manifesta essa nova atitude?
Dois pontos da crítica da Lasch merecem atenção.
Em primeiro lugar, a cultura do narcisismo perdeu a noção do tempo histórico —a ideia de que existe uma continuidade entre o passado, o presente e o futuro. E que nós somos apenas uma parcela de um quadro maior.
O narciso vive apenas na tirania do presente, sem considerar o que herdou dos antepassados e o que deverá legar às gerações vindouras.
Agir com consciência pelo bem-estar dos outros é uma impossibilidade para o narciso porque, em rigor, ele não tem consciência; apenas revela uma autoconsciência sempre submetida aos seus desejos e caprichos.
Mas a cultura do narcisismo trouxe também uma nova definição de amor onde dimensões de sacrifício e de humildade deixaram de ter lugar.
O amor é uma simples emoção —uma “necessidade”, enfim, que deve ser saciada como qualquer outra. Que prazer eu tenho em sacrificar o meu conforto ou a minha vida social pela vida biológica dos velhos, a começar pelos meus velhos?
Justiça seja feita: o narcisismo dos filhos não é muito diferente do narcisismo dos pais, que em muitos contextos também fugiram às suas responsabilidades. Abandono com abandono se paga.
O novo coronavírus, mais cedo ou mais tarde, terá a sua vacina. Mas o vírus do narcisismo, que a pandemia apenas destapou, é bastante mais resistente. E também por isso mais letal.
*Publicado na Folha de S.Paulo
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