
por Giovana Madalosso, na FSP
Morro quando aceito um epitáfio em vida
Morro quando sei que no céu há um eclipse mas não estico o pescoço para fora da janela, nem sequer abro as persianas. Ressuscito quando lembro que sou feita de poeira de estrelas e paro por um segundo para olhar a mão em busca de algum brilho e, mesmo não encontrando rastros de Andrômedas, me fascino com as articulações dos meus dedos.
Morro quando ando maquinalmente para o meu emprego. Ressuscito quando pego outro caminho e me surpreendo com uma fachada ou porta que nunca vi.
Morro quando deixo de ouvir música, quando deixo de experimentar coisas novas no supermercado, quando deixo de usar cores, quando deixo de comemorar aniversários, quando deixo de me interessar pelos outros, quando desisto de acompanhar o que acontece no mundo. Ressuscito quando dou risada sozinho.
Morro quando sento de costas para não ver ninguém. Ressuscito quando puxo uma cadeira.
Morro quando passo todos os dias por baixo de uma árvore e só percebo no chão a sombra dos meus pensamentos. Ressuscito quando olho para cima e enxergo o que estou vendo.
Morro quando digo que políticos são “tudo a mesma coisa”, quando me entrego para a ideia de apocalipse, quando digo que “não adianta, não vai mudar nada mesmo”. Ressuscito quando creio.
Morro like a like quando passo por posts de crianças famintas ou desabrigados com indiferença – agora não, a piedade não foi agendada para esta hora do dia – e sigo scrolling, scrolling, scrolling, em busca de campos de margaridas, imagens de hotéis em que nunca me hospedarei e casas em que nunca viverei. Ressuscito quando enxergo nas fotos uma pessoa, como eu.
Morro quando declaro que “tudo no meu tempo era melhor”. Ressuscito quando me deixo aprender alguma coisa com alguém cuja idade é metade da minha.
Morro quando só certezas. Ressuscito quando dúvidas.
Abotoo o paletó de madeira quando me iludo que minha felicidade depende de abotoar todo dia o paletó de tecido; hora extra, sábado e domingo abotoando o paletó de tecido, para enfim poder pagar um novo, mais caro e exclusivíssimo paletó de tecido, melhor que todos os outros e vulgares paletós. Ressuscito quando me dispo de tudo isso e percebo que a felicidade vive por aí, eu que ando distraído demais com bolsos e lapelas para poder vê-la.
Morro quando resolvo não me envolver com mais ninguém para não me machucar. Ressuscito quando pulo de pára-quedas em uma novarelação, sem ter certeza de onde pousarei, sem ter certeza de que sairei inteira, mas com aquela sensação de viver em poucos segundos uma vida toda.
Morro quando trabalho fazendo o que não gosto. Ressuscito quando executo qualquer tarefa sem sentir a passagem do tempo.
Morro quando me fecho para o diálogo, ressuscito quando língua e dentes.
Deito em um caixão tamanho queen forrado com lençóis 300 fios quando o que há entre nós não é mais paixão, não é mais amor, não é mais nem vontade de resgatar o amor. Ressuscito em uma cama tamanho queen forrada com lençóis 300 fios quando tudo acaba e choro sozinha mas choro, o peito sacudindo, as lágrimas salgadas no canto da boca.
Morro quando me coloco numa caixinha, numa caixa, num caixão e ainda aceito um epitáfio em vida. “Mãe e mulher”. “Dedicada e lutadora”. Ressuscito quando me reinvento.
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