Paulo Ross – profpauloross@gmail.com
Este é um pedaço do que vivi e senti. Este é um alfabeto que escreve belas imagens em minha imaginação. Não quero apenas recordar mas recompor a mim mesmo. O que senti intensamente jamais esqueci.
Eu, Paulo Ross,
fui uma criança repleta de oportunidades motoras. Organizava meus brinquedos, construía meus carrinhos, serrando madeira, pregando, montando as peças de que necessitava para compor a forma final.
Vivi em ambiente simples, porém, livre de protecionismo, livre para criar, imaginar minhas estradas por onde arrastaria meus caminhões carregados de pedaços de madeira, a carga que reproduzia a vida, o trabalho de meu pai.
O trabalho era-me ensinado pelo exercício, pela exploração do ambiente construído pelas ferramentas e pela capacidade imaginativa de que podíamos lançar ao real, replicando a vida dura que levava meu pai.
Eu e meu irmão mais jovem, eu com 08 e ele com 5, íamos a mais de mil metros na beira de um rio apanhar caixas e caixas de argila para moldar nossas obras de pequenos artífices. Trazíamos aquele peso todo sobre uma carreta chamada de galhota, uma caixa sobre duas rodas, com duas ripas laterais, unidas na outra extremidade. Era puxada pelo mais forte até o espaço da nossa fábrica de aventuras, próximo a nossa casa.
Ali, eu punha-me a alisar e bater horas e horas os tijolos que ergueriam as paredes do nosso fogão. Precisávamos de um fogão com chapa e chaminé para secar os pelotes de argila que encheria nossos bocós. E bocós cheios no ombro, estilingue bem feito na mão representavam poder de ação e status junto ao grupo de 2 ou 3 amigos da vizinhança.
Lembro-me de quantos insucessos, pois o tijolo, quando levado ao fogo, muitas vezes quebrava-se. E Resolvi construir as paredes do fogão de uma vez só. Apliquei fogo internamente, torcendo para não aparecer as rachaduras. Claro que elas surgiam na segunda o na terceira comemoração. O fogão já continha uma chapa de uma tampa de tonel e servia para ferver água. Ali já fazíamos café, chá e chimarrão.
o fogão não podia ficar desprotegido. Ali erguemos uma casa enorme de madeira. Era um espaço de 1,50 m por 3,00 m e 1,70 m de altura. Havia porta, cobertura com caimento, assoalho , tudo de madeira, tudo cortado, pregado por nós. Lembro de uma queda de cima da cobertura: caí de costas no chão e perdi o fôlego. Achei que fosse morrer. Sobre os acidentes, posso contar as lições em outra oportunidade.
Mas minha infância é apenas o ambiente de fundo para explicar minha habilidade para assimilar a escrita Braille já nos primeiros dias de aula.
Aos oito anos e nove meses, fui levado à escola pela primeira vez. Tudo era novo: a escola, a professora, o material; o Braille, a reglete, a punção.
- Como vimos, não seria mesmo necessário explorar outros materiais como fontes de estimulação tátil ou para organização mental dos elementos que compõem a matriz do Sistema Braille.
- (imagem do Braille)
Parece que havia conhecimento prévio suficiente para iniciar a escrita, a leitura, como caminho inevitável do abandono da manipulação grosseira de argila, carros de madeira, estilingue que cercavam minhas mãos, movendo minhas ações em todo ou quase todo período anterior à escolaridade.
As pelotas de argila que enrolava aos montes ganhavam o valor simbólico de anteceder pequenos pontos que viriam ser, mais tarde, letras e palavras. Meu brinquedo de caçar, atirar com meu estilingue convertera-se em símbolo para eu caçar as ideias e transferi-los nos pensamentos da imaginação para a escrita, podendo ser apreendido, contado, apreciado, tal como se fosse uma conquista de minhas investidas em alvos cantantes e voadores.
A repetição, a persistência levavam-me a preencher folhas e folhas com letras e palavras, pois imperava o princípio do fazer para se incorporar ao cérebro como segunda Natureza.
Assim fiz. Nada de recurso paralelo. Tratava-se de escrever e ler, ler e escrever. E, os mágicos pontos ganhavam poder de pensamentos, um recurso para demonstrar como cada um podia se diferenciar em ideias, em capacidade de comunicar e de entender os problemas que se nos era apresentado. Pouco havia de contextualização, pouco significado atribuído a possíveis mudanças em nossas vidas com o conteúdo que se nos apresentava. Focados na tarefa de ler e entender, escrever e ser entendido, não nos culpávamos com discussões políticas. Não tínhamos consciência que podíamos reivindicar melhoria de qualidade de nossa alimentação, por exemplo. Considerávamos que tudo estava certo e que assim deveria continuar. Vivíamos sob a lógica da criação, submetida aos limites do “real”. Vivíamos enxergando uma certa “naturalidade” em nossas rotinas.
Preciso recuperar minha gratidão à doce Professora Anilce, nas mãos de quem as minhas tocaram as primeiras palavras escritas. Ao lado de seus cabelos longos e fartos, teci as primeiras experiências de amarrar um sapato. Em sua companhia diária, eu erguera os primeiros sonhos, imaginando o que seria uma moça bonita.
Mas ainda, no primeiro ano Escolar, fui acolhido pelo enérgico Professor Benedito, um mestre rígido, determinado a fazer valer suas ideias, sua cultura. Alegrava-se ao detectar meus acertos em matemática, minha disciplina nos cálculos com o soroban. O soroban era seu ícone de expressão da lógica matemática. Mas ele também orgulhava-se de seus conhecimentos em história mundial, sua intelectualidade.
Não posso deixar de mencionar que Benedito quase me considerava um filho, mas bem depois de não ser mais meu professor.
Mas, fora José Bonifácio que praticamente conjugara esses papéis: professor e tutor. Bonifácio quase todo dia, trazia lições extras para que eu fizesse individualmente, além daquelas propostas para toda turma de 4 ou 5 alunos. Outro diferencial era que conversávamos sempre sobre vários assuntos. Era, então, um conselheiro, um contador de histórias, um organizador do conhecimento da humanidade em pequenos trechos para minha compreensão.
O professor Odilon, um fenômeno na oratória, um leitor e escritor de excelência, um amante da poesia e da pessoa humana, transmitira-me o desejo em tornar-me, um dia, professor, tal como o é.
Sempre animado, altivo, ético, inspirava-nos a ler com entusiasmo os textos, as histórias. Provavelmente, construíra em mim as raízes para escrever. Mas a oratória brilhante transmitia-nos um tal poder que nos projetava para além de onde estávamos.
Esses mestres mencionados foram os primeiros professores cegos a nos dar referência sobre o valor do conhecimento, o valor da Escola na solidificação de uma carreira futura.
Posteriormente, outros colegas cegos, outros professores vieram a compor nossa rede de conexões, nossas referências para legitimar nossas escolhas.
Lembro-me do orgulho do Bonifácio em ser um dos poucos brasileiros aptos para escrever Braille em inglês, o Braille abreviado. Ele cultivava um amor platônico por outra professora, mas nunca o revelara a ela.
Nesse misto de cognição e linguagem, diálogos, histórias, jogos de futebol, dominó, futebol de pino, baralho, compúnhamos nossa identidade, elaborávamos nossos sonhos para o futuro.
Leitura e escrita em Braille eram canais para expandir nossas ideias, alimento para nossos diálogos, energia para sustentar nossos projetos, fogo para constituição de uma vida adulta próspera e segura.
Estudávamos e brincávamos; racionalidade e afetividade se conjugavam alternando nossas certezas e nossas ilusões, nossas percepções. Tato, audição, palavras e movimentos eram nossos instrumentos que acessavam nossos livros, nossos amigos ou professores, os mais experientes, as ações que viriam a dar vida a nossa existência, ao nosso presente e plantar sementes para algo ainda distante no futuro.
Eis que todos esses personagens se revelam vivos em mim, ditando minhas crenças, minhas pequenas intervenções no mundo.
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