A agonia do outro nos faz, mesmo que por lampejos, praticar a sensibilidade
Minha vida toda tive contato muito próximo com dores do mundo, sejam as físicas, que nos comovem por provocar olhares de aflição e gritos de angústia, sejam as silenciosas, aquelas que auscultar exige atenção que não cabe apenas na frase “vai passar”.
Em hospitais que passei parte importante da minha infância, vi gente quebrada, recortada, anestesiada, enfaixada da cabeça aos pés enquanto parentes –mães, muitas mães, claro e sempre!— choravam, rezavam e rogavam por dias melhores.
Os médicos e seus esmeris eram os guardiões da esperança que, muito raramente, não se transformava em alguma nova realidade de viver. Em meio a tudo isso, as dores.
Li em algum lugar que a demonstração de dor em uma atração televisiva sobre a cantora Céline Dion, que pena com uma síndrome rara, havia sido algo exagerado, um erro, algo muito cruel e íntimo para vir a público.
Fiquei pensando como seria bom se todo desconforto se resolvesse desligando a TV ou mudando de canal. A agonia do outro nos faz, mesmo que por lampejos, praticar a sensibilidade, nos comover para além de nosso quintal e pode nos mover em solidariedade, em conscientização e apoio efetivo por um alívio, um abraço e até uma cura.
Deveria ser obrigatório para virar gente, e não algo a ser evitado, que todos visitassem lugares de apoio às crianças com câncer, às crianças em abandono, às crianças que foram exploradas a toda sorte. Fui diversas vezes ao longo de minha jornada profissional e também na “pessoa física”.
As aulas ali são de perseverança, de glórias à ingenuidade, de “amanhã será um dia melhor” e de quão forte, resiliente e maleável é o material que fazem para gente a carcaça de existir. Ninguém volta desse lugares sem também usar um acesso medicamentoso para a alma ou um caixote cheio de histórias de carência.. e dores.
Deveria ser obrigatório, antes da velhice, a gente passar um dia todo colhendo relatos das dores dos velhos. São muitas, são muitos anos, eles são muitos
E o que dizer dos aprendizados humanos, até mesmo sobre-humano —à medida que nos mobilizam em fé e em energias—, quando um filho está em sofrimento?
O projeto Dodói já está em 40 hospitais do país e se prepara agora para uma ampliação Foto: Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier
Qualquer pai que tenha experimentado conectar-se com as entranhas da cria tocou a sensação da transferência de um sofrimento, chorou pela impossibilidade de passar inteiramente para si o padecer de seus pequenos.
Mas também quando nos dispomos a amparar, talvez ao menos tentar compreender, as lamúrias silenciosas das pessoas, aquelas que sacodem o gosto de estar vivo, que catucam a alma, que abrem as portas do desassossego, ganhamos cimento e plumas para nossas próprias aflições.
Adoece não ouvir os gritos internos e, invariavelmente, é preciso ajuda para ampará-los, entendê-los e transformá-los. E caso nos cause contágio determinado sofrimento, é muito provável que nossos próprios gritos estejam silenciados.
Sim, é impactante ver as cenas do retorcer sofrido e quase interminável da cantora e atriz norte-americana que tanto cantou não querer ficar mais sozinha, que tanto exaltou os sentimentos. Por outro lado, não nos viremos contra a comoção, não evitemos saber dos choros e da profundidade das feridas de quem sofre. Entendo serem esses, justamente, caminhos para menos solidão e mais amores.
Por Jairo Marques (FSP)
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