Decreto de governo de SP, que libera assistente particular em sala de aula, afronta princípio de construção coletiva da educação inclusiva
Um dos temas mais áridos a respeito de diversidade e inclusão é o desenvolvimento de autonomia por pessoas com deficiência. É complexo reconhecer, mas fundamental externar, que famílias ainda sufocam seus entes com questões físicas, sensoriais e, principalmente, intelectuais, em nome do que defendem como cuidado, atenção e afeto.
Escrevo à luz de um recente decreto do governo de São Paulo que liberou a entrada de assistentes pessoais de alunos com deficiências severas dentro das salas de aula da rede estadual de ensino. O tal auxiliar tem de ser bancado pelos responsáveis do estudante ou ser ele o próprio parente, em bom dialeto tupiniquim, a mãe.
Nos meandros da heterodoxa decisão, a alegação que o poder público é lento em cumprir a lei, que já determina a presença de um profissional que zele por demandas específicas de alguns alunos, e também a preocupação de pais em darem aos filhos a atenção adequada, bem lavada, passada e engomada.
De fato, há volume de queixas em torno de crianças com deficiência sem a devida atenção no ambiente escolar, mas a solução caseira para a questão é matar o mensageiro, é uma afronta ao que se entende como educação pública, como educação inclusiva e como direitos da pessoa com deficiência.
Levar a casa para dentro da escola reduz a chance da construção de autonomia, seja ela como for, mesmo que na indicação, com o piscar dos olhos, de que o João quer ir ao banheiro. Desobriga e tira o sentido de envolvimento, da Maria, aluna sem deficiência, de ficar atenta às demandas de um colega com autismo e evoluir em suas percepções de vida. O cada um por si é um modelo fracassado e distante do mundo mais plural.
Aluna com síndrome de Down em refeitório da Escola Municipal Tenente-Coronel Gaspar de Godoi Colaço, em Santana de Parnaíba (Grande SP) Marlene Bergamo/FolhapressMAIS
Esse ajudante caseiro, sem vínculo com a estrutura da escola, carrega em si “não me toques”, receios de permitir o novo e de interagir com o novo e uma voz frequente dentro de sua cabeça: “preciso protegê-lo”.
O decreto do governador Tarcísio tem poder de inflamar iniciativas que avaliam ser “necessário e muito melhor” encarcerar meninos e meninas com deficiência em locais “próprios para eles”, onde serão zelados com muito carinho e nenhum contato com a re-a-li-da-de.
Tem poder de atrasar as demandas que pressionam os governos por melhores condições de inclusão dentro das escolas públicas, além de dar coragem às instituições particulares de acharem que tudo é responsabilidade da própria família.
Desde menino, escuto os outros falarem que sabem o que é o melhor para mim, mesmo eu não tendo um comprometimento intelectual e tendo desenvolvido uma ampla autonomia ao longo de minha vida em uma cadeira de rodas.
Isso demonstra que ver a pessoa com deficiência como um ser dependente é algo arraigado no coletivo e, fatalmente, dentro da maioria das famílias que, talvez, não consigam reparar que estão ocultando e anulando seus queridos. E isso não tem relação com o tipo de comprometimento e alcance de possibilidades.
É óbvio que existem condições humanas muito desafiadoras e que seja natural querer fazer o melhor para os que as carregam e apurar o olhar aos seus lamentos. Mas a batalha da diversidade é feita com transformações coletivas, não ao gosto do individual.
Por Jairo Marques (FSP 09/04/24)
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