“Quinze de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar” (p.19).
É o começo do diário de Carolina Maria de Jesus, paulistana da favela do Canindé, desocupada em meados dos anos 60. Ela mesma favelada, negra, mãe solo de três filhos, catadora de papel, de escolaridade mínima. No dia 19 de julho, registrou: “Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornecem os argumentos” (p. 26).
O sonho de Carolina se tornou realidade. Das páginas do diário ao encanto da publicação da primeira edição de seu livro “Quarto de Despejo”, em 1960. Na luta diária contra a fome, a doença e a violência, encontrava tempo para fazer o que mais amava. Assim escreveu em 21 de julho:
“Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem” (p. 30).
Carolina percebeu a importância das palavras e, ao escrever, escreveu com a força da condição de sua vida miserável.
“16 de junho: Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para nos suicidar. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó” (p. 161).
O leitor, página a página, vai sendo envolvido pela força daquela mulher que levanta às quatro horas da manhã para buscar água na única torneira da favela. Fazer o café, dividir o último pão com os filhos, muitas vezes só para os filhos, e sair para catar papel. Tinha consciência aflitiva do dia: o que recebia com a venda do que recolhia nas ruas de São Paulo transportado num saco (instrumento de trabalho) sobre sua cabeça determinava o que comer e a quantidade a dividir com os filhos. A dor de um dia de trabalho frustrado, não ter o que comer para saciar a fome só piorava com a fome dos filhos, quando dormir era o único lenitivo.
A expressividade de Carolina muitas vezes pode chocar o leitor, mas como escreveu a professora e pesquisadora Fernanda Miranda: “No texto caroliniano pulsa uma voz narrativa que desvia, que escapa, que surpreende. A partir do seu olhar, sentimos o interior da fibra do tempo na matéria humana, nas cores, nos sorrisos”.
A personagem, a autoria e a narrativa formam o pensamento de sua própria vida que instiga o leitor do “Quarto de Despejo”, traduzido para treze línguas e tido como referencial importante para estudos culturais e sociais, tanto no Brasil como no Exterior.
Os pensamentos e reflexões de Carolina Maria de Jesus não se limitavam às favelas como quarto de despejo das cidades. Amontoados de gente desprezados pelo Estado, pela elite, deixados à própria sorte.
No dia 21 de maio, registra: “Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o país dos políticos açambarcadores” (p.43).
Carolina faleceu em 13 de fevereiro de 1977. O Brasil não é mais o mesmo. As favelas se multiplicaram, os açambarcadores também, os gabinetes e salões continuam a desequilibrar a balança social dos pratos cheios em detrimento dos vazios. Mas um país de dimensão continental tem muito espaço para quartos de despejo. Até quando? Não sabemos.
“Vinte e seis de agosto: A pior coisa do mundo é a fome” (p.175).
Carolina viveu e sentiu essa dor como uma companheira. Um estigma social do qual ainda não nos libertamos.
P.S. – O texto acima teve como inspiração e referência o livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Edição comemorativa (1960 – 2020), editora Ática.
por Vilmar Farias
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