Defender os próprios interesses é importante, mas respeito ao estar bem do outro é o que nos faz melhor
Biscoita, minha filha Elis, de oito anos, me olhou da cabeça aos pés num relance, fez uma cara de mistério e preocupação, e saiu correndo pelo condomínio. “Pirou com o calor”, pensei, e segui rodando despretensiosamente, conhecendo os detalhes da morada do primo.
Sala de jogos, sala de “games”, brinquedoteca, mercadinho, sala caso falte alguma sala, quadra –não reparei se era de jogos ou de “games”—, jardins. “Biscoita tá demorando, né?”, questionou a prima que me ciceroneava por ali.
“Ah, certeza que foi engambelada por algum parquinho, fica tranquila”, disse eu, que sou desses pais que entrega na não de nossa senhora da bicicletinha o zelo da cria em situações que não pode ter total controle.
Num repente, eis que vem correndo em minha direção, a cria esbaforida. Tinha um sorriso colado na cara e um lume de satisfação nos olhos. A prima respirou aliviada e a pulga de minha orelha saltou.
“Pai, fui procurar seus óculos! Vi que você não estava com eles e fiquei preocupada, Imagina se tivesse perdido? Mas encontrei, pai, e nem quebrou nada. Você não consegue ler sem eles, né, pai?”, disse Elis, depois de me dar um abraço cheio de orgulho de seu ato, cheio de orgulho de pai.
No dia seguinte, a prima me manda uma mensagem. “Primo, fiquei muito comovida. Sua filha, tão pequena, com esse cuidado contigo. Como é bom ter quem se importa com a gente”.
Em casa, a troca que tenho com minha pequena é a da convivência onde todos fazem por todos. Celebramos as festas juntos e curamos os calundus de braços dados. Importar-se com o outro é uma lição diária que já tornou-se prazer de viver, sentido de amor.
Defender os próprios interesses é importante, tem seu espaço, mas a harmonia entre os desejos, o respeito ao “estar bem” do outro é o que nos faz melhor. É gostoso quando isso se realiza e melhor ainda quando essa demonstração é coletiva.
Há algumas semanas, nos EUA, um grupo de fãs da cantora Beyoncé se mobilizou para conseguir que uma pessoa com deficiência, que havia passado maus bocados para ir a um show da diva, sem sucesso, conseguisse ver a um espetáculo, como qualquer outro aficionado.
Quando um bocado de gente se importa com uma exclusão, com uma injustiça, com uma dor, com uma invisibilidade, é como se o degelo dos polos estancasse por alguns instantes, o aquecimento global desse um alívio diante nosso frescor de respeito à vida.
Importar-se com o outro significa abrir mão, ampliar o que se sente, ceder, rever, reaprender, aquietar-se ou esgoelar-se. São cada vez mais trincheiras para defender o meu e cada vez menos terrenos para compartilhar entre nós.
Penso que ser inquieto na busca por auxiliar crianças a entender a existência como plural, como oportunidade de convivência em muitos quintais, pode ser determinante no silenciar de explosões multidoloridas e para o cortejar dias em que a dor e as perdas de todo o mundo importa.
Por Jairo Marques (FSP 11/10/23)
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