O que vem do outro pode nos dar alguma segurança, pode abrir janelas, pode, mesmo, até fazer a gente arrumar as malas
A moça sacolejava as mãos com os braços bem para o alto. Sorria largo e olhava para mim com um jeito de surpresa boa, como se avistasse alguém sob o efeito de saudade. Eu não fazia ideia de quem era e fiquei com aquela sensação de quem duvida que é você mesmo o alvo do entusiasmo
Nos perdemos por alguns momentos, mas, num repente, ela estaciona sua cadeira de rodas ao lado da minha. Tinha tatuagens bonitas pelo corpo e uma certa ofegância na fala. Despretensiosa, contou a vida num intervalo de menos de dez minutos.
“Oi, Jairo, eu sou a Selma, você não me conhece, mas eu te conheço bem. Leio seus textos há um tempão. Sou do interior da Bahia e criei coragem de me mudar para São Paulo com os relatos que você sempre fez.”
Fiquei meio sem jeito com aquela declaração, ao mesmo tempo que comecei a maquinar o tanto de poder que existe numa inspiração. O que vem do outro pode nos dar alguma segurança, pode abrir janelas de novos ares, pode, mesmo, até fazer a gente arrumar as malas.
“Eu não achava, antes de te ler, que dava para ter uma vida numa cidade grande, que dava para conseguir um trabalho, ter uma casa, conhecer novas pessoas. Lá no interior tudo era muito mais complicado para uma cadeirante. A gente é meio invisível.”
Afrontar a invisibilidade talvez tenha sido mesmo algo que sempre busquei. E há uma perversidade embutida em apagar pessoas com deficiência: eles “dão trabalho”, demandam demais, são diferentes demais, precisam de coisas demais. Melhor que não estejam.
Falando nisso, um aparte para não perder a onda. É linda a cena da Barbie cadeirante dançando no filme cor-de-rosa, mostrando o poder das diferenças. Gostei da representatividade, embora a trama siga o modelo de outras vertentes de inclusão que “colocam lá” alguém que mostre o diverso sensorial ou físico, mas com zero protagonismo.
Mas, não dá para negar, se um caboclo quase careca e fabricador de parágrafos como eu atingiu alguma coisa no coraçãozinho da Selma, uma Barbie malacabada, numa das obras mais vista do ano pelo mundo, pode ajudar bem a alterar o rumo de rio de exclusões.
Sou absolutamente avesso ao discurso de cegos, surdos, tetraplégicos, arruinados das partes em geral se tornem “exemplos” para outras realidades, como se os tremendos apertos, as angustiantes dores e os ácidos preconceitos enfrentados fossem motor –e não suplícios— para a existência.
O exemplo embute a ideia de algo a seguir e um dos princípios da diversidade é justamente o contrário, é cada um poder seguir seus caminhos como pode, como quer, como anseiam seus desejos e sua alma. Inspirar é algo diferente. Inspirar é como pegar o lápis para começar um rascunho.
Gosto de pensar que afora o entusiasmo do ego, inspirar alguém com propostas de novas narrativas sobre possibilidades de conquistar espaços de cidadania e completude –à base de muito rugido, que fique claro— pode ter efeitos duradouros, com lastro nada vinculado a visualizações e audiência, mas com amplitude inimaginável.
O inesperado encontro com Selma e os rodopios da Barbie a bordo de sua cadeira de rodas me deram uma emoção generosa sobre minha própria trajetória, que não teve lá muito espelho e quase nada de pink, mas que segue me rendendo palavras, movimento e atrevimento para querer mudar o mundo.
Jairo Marques (FSP 02/08/23)
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