Modos de vida contemporâneos alteram conceitos, formas e papeis sobre o zelo com o outro; afeto é de todos
Olhei pelo retrovisor do carro para os cabelos compridos da minha filha biscoita e estavam bem esvoaçantes, um tanto desgrenhados. A blusa também vestia meio torta, assim como a calça. Dar conta dela sozinho, às vezes, tem me pegado.
Elis, de oito anos, cresce, eu envelheço. Uma vida toda sobre uma cadeira de rodas vai me cobrando seu preço nos detalhes, ser pai de verdade de uma menina descobrindo cada vez mais possibilidades torna a experiência nada elementar. Mas não estou sozinho nessa sensação que parece ser um certo desamparo.
Gigantescas mudanças sociais e de comportamento, em curso no Brasil e no mundo, começam a descortinar consequências. Uma delas é apontada por pesquisadores de várias áreas do conhecimento em seus estudos: passamos a enfrentar e a ter de lidar com o que está sendo chamado de “crise do cuidado”.
Estamos envelhecendo mais, enlouquecendo mais, sendo acometidos por novas doenças e degenerações, mudando a forma de nos organizar e nos ver emocionalmente –adotamos a fluidez!—, ficando mais ansiosos com tudo isso e também com o que vem do universo cibernético.
Embora ainda haja grupos mais vulneráveis aos impactos dos novos tempos –aqueles oprimidos pelos preconceitos resistentes de sempre— há também uma presença mais significativa de jovens e adolescentes e gente “sem defeito aparente” nesse bobolô, uma vez que cuidado humano tem relação muito próxima com afetos e afetos envolvem a todos.
A tal crise do cuidado não diz respeito apenas a quem carregará o piano de populações mais velhas, por pessoas e suas solidões, por famílias diferentes de papai, mamãe e cachorro, por quem precisa de suporte físico, médico ou tecnológico para levar a vida.
Ela abrange os próprios conceitos do que é cuidar, como cuidar, quem cuida e como receber cuidados. Tudo está em transformação. O modelo assistencialista de dar uma ajuda, de olhar com “boa vontade” por aqueles que ninguém quer saber, vai se tornar insustentável diante de pessoas que devem ser vistas de uma maneira não somente amorosa ou improvisada, mas profissional, humana, empática e moderna.
Cuidar e ser cuidado se movimentam das posições estereotipadas de zelar, de ser caridoso, de ser um necessitado de apoio –e sentir vergonha por isso— para algo mais pensado em seus impactos e implicações. Ter saúde mental não passa apenas por ter suporte terapêutico, ter uma vida autônoma não se resolve só com máquinas.
As soluções para a crise do cuidado são conjuntas, com agentes que também são diversos em recursos, possibilidades, conhecimento, alcances, competências e emoções. Tudo se converge para dar mais qualidade de vida a quem entende que viver é plural, que uns podem certas coisas, outros, outras, sem deméritos por receber, sem diminuir quem recebe.
Espero que num futuro bem breve, eu não sinta vergonha por não dar conta de tudo para minha menina, e que o guarda de trânsito, o professor, o vizinho se apresentem –e eu receba sem torcer o nariz– para ajeitar os cabelos dela, não por mim ou pela estética, mas pela infância, pela sintonia entre as gentes, pelo cuidarmos uns dos outros.
Por Jairo Marques (FSP)
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