Quando a gente sabe mais a respeito de ser cego ou ter nanismo, diminui-se o extremo choque da diferença, o puro sentimento de pena
Minha mãe flerta com os 80 anos e tem tido perdas importantes de mobilidade, da visão e da audição. Mais do que os enfrentamentos mais óbvios e humanamente complexos desse conjunto de deficiências, ela padece do estranhamento e do desconhecimento de ter uma condição que a diferencia demais dos outros, mesmo tendo um filho que é cadeirante desde a infância.
Avançamos ligeiramente em sociedade e na conversa à mesa do jantar —ou no sofá da sala, no caixote da cozinha— e já conseguimos falar alguma coisa sobre orientação sexual, sobre violências familiares e de gênero, sobre opressões de raça, sobre morte, mas ainda falta coragem de debater as implicações, conceitos e realidades em torno de deficiências físicas, intelectuais ou sensoriais, condições as quais podemos todos experimentar sem prévio aviso.
Reconheço, porém, que haja um enredamento inerente ao tema para torná-lo frugal, que seja pouco palatável tratar de perdas de movimentos enquanto se assa um churrasco ou abordar mudanças em capacidades de autonomia enquanto se engole uma macarronada.
Deficiências envolvem transformações enormes na vida e carregam em si elementos indigestos como dores, refazeres, exclusões, deformidades, incompreensões e isso tudo forma uma densa nuvem de medos, estranhamentos e desconhecimentos que se torna ainda mais assustadora diante da ignorância.
Dito isso, por outro lado, não há outra maneira de tornar a questão mais amparada de elementos concretos para ser encarada de forma franca, honesta e contemporânea que não dialogar a respeito de suas implicações, seus estigmas, suas falsas construções sociais.
As questões de diversidade ganham relevância acelerada e crescente entre as atuais gerações e não dá para repassar para o Google ou para o TikTok a função de abordá-las com empatia e de forma real e substancial dentro de casa.
Guarda vidas auxiliam mulher em cadeira adaptada durante o programa Praia Acessível, na praia de Iracema, em Fortaleza (CE) Tiago Stille
Por variadas razões, as projeções indicam que teremos mais pessoas com demandas vindas de deficiências num futuro breve e me parece maduro que as sociedades saibam ampará-las com equilíbrio entre o atender suas necessidades, reconhecer sua legitimidade como cidadãos e validar suas existências sem os ranços excludentes que temos hoje.
Quando a gente sabe mais a respeito de ser cego, ter síndrome de Down ou ter nascido com nanismo, diminui-se o extremo choque da diferença, o puro sentimento de pena e constrói-se caminhos mais acolhedores e potentes de incluir, de saber a realidade e até mesmo de acomodar uma situação pessoal ou com alguém muito próximo.
Não dá para achar que discutir deficiência vai trazer mal agouro, que é algo distante demais para quem “se cuida” ou tem a saúde em dia e “Deus me livre disso acontecer um dia”.
Essa forma de agir empurra as pessoas que já possuem algum tipo de deficiência mais para o campo de isolamento e do exotismo e aponta para baixo a mentalidade que deveria levar mais proteção, prevenção e preparo para quem terá de conviver com uma nova condição no futuro.
Ampliar os campos e os momentos para conversas sobre as várias condições de estar vivo —com seus momentos de felicidade, prazer, desejos e perrengues—, para além dos ambientes médicos e projetos de diversidade, levando-as para a intimidade de nossas construções de caráter dentro de casa, fará que menos senhoras velhinhas –e um bocado de outras gentes– padeçam com reflexos simplesmente natos ao serumano.
Por Jairo Marque (FSP 24/5/23)
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