“Não me considero um ator fora da língua de sinais”, diz o artista e professor, que também é um ativista pelos direitos das pessoas surdas
É na Língua Brasileira de Sinais (Libras) que Jonatas Rodrigues Medeiros diz “oi”, com a naturalidade de um ouvinte que circula na comunidade surda desde a adolescência. Hoje, ele é tradutor-intérprete e professor de Libras, mas não só. Aos 31 anos, também é ativista pelos direitos das pessoas surdas e um ator que conquista aplausos intensos do público – expressos pela vibração de pés batendo no chão do teatro, mãos balançando para o alto e muitas palmas.
Jonatas é “um Curitibano pé vermelho”. Nasceu em São João do Ivaí, de onde seus pais saíram para trocar o trabalho na roça por uma vida melhor na cidade quando ele tinha apenas um ano. Eram somente os três, mas não cresceu com o sentimento de ser um filho único, a casa estava sempre cheia de crianças graças à vocação da mãe para cuidar dos outros. A família é evangélica e os filhos de outras mulheres frequentavam a casa enquanto as mães trabalhavam, era um serviço social para a comunidade da igreja. Foi também na Assembleia de Deus que ele conheceu a Libras.
“Surdolândia”
No início da adolescência, frequentou a igreja nos bairros e ali nasceu a paixão por um grupo de surdos. Embora a comunidade surda não seja restrita a um território – “não existe uma “surdolândia” – a carência de intérpretes, entre outros fatores, acaba reunindo os grupos na Assembleia do Centro. Ele também foi para lá aprender língua de sinais e logo deu conta da missão, então passou a interpretar os cultos. A relação espiritual hoje é outra, não acredita naquele Deus cristão, mas em algo como o que se lê nas páginas de “A paixão segundo G. H.”, de Clarice Lispector (1920–1977): “No final, a gente vai virar petróleo; uma vida sem ser esta vida”.
Mesmo assim, a gratidão pela congregação continua forte, foi o primeiro espaço que abriu a possibilidade para sua formação. Inclusive, foi em uma associação ligada à igreja evangélica, onde ele era secretário e dava aulas de Libras, que conheceu sua esposa, Viviana Tatielle Rocha. Ela tem um irmão surdo e também namorava um surdo quando entrou no curso para melhorar sua comunicação em sinais. O amor deu seus primeiros sinais, casaram há 11 anos e Viviana, formada em letras e em design de moda, também trabalha como intérprete de Libras.
Depois o amor fez um novo gesto, sinalizando uma das interpretações possíveis para os versos “Tengo la vida en dos mitades/ Pero amor lo tengo entero” (da música “Extranjero”, de Cassyano Correa e Maycom Ananias, gravada por Maria Gadú) tatuados na perna direita do tradutor. A ousadia de quem quebra convenções cotidianamente fica clara quando diz: “Eu sou trisado“. Isso significa que Jonatas está num relacionamento não de duas, mas de três pessoas: ele, Viviana e Felipe Patrício. Também intérprete de Libras, além de trabalhar como editor de vídeos e produtor cultural, Felipe entrou na vida do então casal quando Jonatas atuava no espetáculo “Giacomo Joyce”, peça bilíngue montada em 2017.
A mesma espontaneidade que mostra nos palcos como tradutor e ator é reconhecida nas falas de Jonatas sobre como o relacionamento dos três é visto pelos outros, sobre como quebrar paradigmas é difícil. A serenidade vem de manter as coisas muito bem resolvidas entre os três: “Ter de justificar ou militar o amor é algo muito complexo”.
“Perdi espaço para um vaso de flor”
“Ter a vida em duas metades, mas o amor por inteiro” também parece dar pistas da vida do ouvinte Jonatas entre os surdos. Foi essa comunidade quem o abriu portas que, talvez, fossem inacessíveis. A lente que aciona em tudo o que faz é a do tradutor, ser intérprete de Libras o levou ao estudo (ele faz doutorado), ao magistério universitário e a muito mais. Mal passou dos 30 anos e subiu em palcos como o do comício do presidente Lula na Rua XV de Novembro, na campanha eleitoral de 2022, e do espetáculo “Ficções”, estrelado por Vera Holtz, no Guairão, entre outros feitos.
Por outro lado, nos ossos do ofício, até precisou travar batalha com um vaso de flor. Acabou derrotado pelo medo que habita diretores e produtores sobre o intérprete de Libras roubar a cena. Foi ainda mais para o canto, ao som dos ecos “borra a cena”, “invade”, “suja a cena”, “ruído”. Essas falas vêm da falta de conhecimento ou de empatia, afinal, dar espaço para o tradutor é garantir lugar para uma língua que é visual. Alguns de seus colegas evitam o embate e tiram a tradução mais artística da cena com uma justificativa válida – precisam trabalhar. Além de argumentos técnicos, a atitude diferente vem da arma nada secreta de Jonatas: “Eu sou um pouco mais ousado”.
Injustiça
Ousado, porém sensível. A emoção invade seus olhos na hora de escolher, entre tantos trabalhos, o favorito. Durante o isolamento social imposto pela pandemia da covid-19, traduziu músicas infantis, como as do “Mundo Bita” e do “Cocoricó”, para entreter o sobrinho CODA (bilíngues filhos de surdos). A recompensa veio no formato de outros vídeos, mostrando crianças surdas copiando os gestos, com mães contando sobre os filhos encantados, com pais agradecendo. A iniciativa era pirata, contudo alguns materiais permaneceram no YouTube porque a Lei de Direitos Autorais permite, em caso de falta de acessibilidade e ausência de fins lucrativos. O episódio traz boas memórias, ao lado de certa tristeza, e faz Jonatas refletir sobre o que vive uma criança surda quando não acessa nada ao seu redor, quando liga a TV e não encontra a língua de sinais. “É injusto para caramba!”
“Não me considero um ator fora da língua de sinais”
O aperfeiçoamento da expressividade do corpo veio de cursos e oficinas de teatro, mas o crédito ele deposita no universo comum entre o “interpretar” da tradução e o da atuação. A afirmação de que a língua de sinais é imagética e, por excelência, performativa, serve como deixa para a confissão dele: “Não me considero um ator fora da língua de sinais.” Sinceridade tamanha que parece um grito, faz a gente ficar atordoado pensando sobre como a autoimagem do rapaz é muito diferente do que se vê em cena. (Fica mais espantado quem assistiu à primeira montagem encenada em Libras da “Ilíada”, poema grego de Homero.)
Antes de estrelar o canto I da “Ilíada em Libras”, houve um longo caminho. Foi a professora Sueli Fernandes que o apresentou à artista Chiris Gomes e, então, teve o primeiro contato com a Sala 603, um núcleo cultural que pesquisa e experimenta teatro. Na época, a ideia de Chiris era apenas inserir a língua de sinais em um momento de um espetáculo, foi assim que a peça foi para o palco. Foi também ali que conheceu Octávio Camargo, que já saiu falando sobre a “Ilíada”, projeto que desde o ano 2000 chega aos teatros encenado em solos, canto por canto. “A Chica [apelido de Chiris] e o Octávio são os culpados pela minha paixão por estar no palco pensando a língua de sinais.”
Uma década para levar uma peça ao palco
Foram dez anos. Não os dez da Guerra de Troia, mas sim os dedicados ao preparo do espetáculo, com surdos traduzindo o texto ao lado do intérprete, com o preparo do ator e a elaboração das cenas divididas em trechos e ensaios dirigidos por Rafaela Hoebel (surda) e Camargo (ouvinte). A “Ilíada” é parte importante da vida, está no corpo de Jonatas, virou uma das tatuagens em sua pele. Durante a montagem do “Canto I” ainda surgiram outros espetáculos, um em especial conquistou o coração de Jonatas: “Surdo Logo Existo”, montado em 2019. A peça foi concebida em teatro surdo (escrita e encenada por surdos), e, apesar de não ter texto em língua portuguesa, era inteiramente compreensível para todos.
Sobre as histórias do futuro, Jonatas espera trabalhar para dar vez e voz à comunidade surda, pensa inclusive na produção de outros cantos de “Ilíada”, estrelados por atores surdos. O cenário é desenhado a partir da busca pela maior empregabilidade da comunidade na arte e da ampliação de sua atuação não como fim, mas como meio. “Quero trabalhar com a arte sinalizada por artistas surdos, em peças infantis para crianças surdas, em literatura surda, e no cinema com a língua de sinais”.
“Ilíada em Libras – Canto I” em cartaz
Jonatas Rodrigues Medeiros está no espetáculo “Ilíada em Libras – Canto I” até domingo (30/04) no Teatro Novelas Curitibanas – Claudete Pereira Jorge (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1222 – Centro). As sessões são às 20 horas, duram 60 minutos e têm classificação livre. Os ingressos são gratuitos, a distribuição começa às 19h.
Para ler sobre a temporada do espetáculo, clique aqui; para outras informações sobre a tradução do espetáculo, visite o perfil Ilíada Libras no Instagram.
Fonte: Jornal Plural (01/05/23)
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