Cegos não escolhem nada ao Deus dará, ‘jogando para o universo’; é limitação dos videntes achar que a visão é determinante para apontar o bonito
Há um pressuposto absolutamente errado no conceito “às cegas”, o que remeteria fazer escolhas, tomar decisões ou atitudes como os cegos supostamente fariam, no escuro, sem amparo do critério visual e, fatalmente, sujeitas a erros, algo meio inconsequente e com grandes chances de levar a vaca para o brejo.
Em um desses programas pops da Netflix, “Casamento às Cegas“, um sujeito musculoso de cabelo cheio de glostora despachou a “noiva” para quem, antes do encontro visual, ele havia declarado “amor pra mais de metro”, paixão eterna independentemente do partido de estimação e com milhares de coraçõezinhos.
A razão do recolhimento da ardência do rapaz ficou evidente: a pretendente era gorda e ele não “saberia lidar” com alguém com tantos atributos, tantas virtudes e de proeminente tamanho. A moça segurou firme o rojão da rejeição no momento, chorou de levinho, mas, claramente, levou para casa uma dor ardida.
Como o moço havia tomado sua decisão “às cegas”, tudo bem! Cada um com seus problemas, bota a viola no saco e segue a vida, afinal, ele não pode avaliar seu produto de maneira ideal, completa e “responsável”. Se desse certo o casório, seria lindo, como houve gordura no meio, culpa de cegueira da situação.
Não sou desses que jogam contra a língua portuguesa e entendo o sentido que a expressão ganhou na sociedade com seu uso frequente, mas, em tempos de repensarmos posturas diante das diferenças humanas, existe, sim, uma carga capacitista —o preconceito contra a pessoa com deficiência—- entranhada no “às cegas”.
Cegos não escolhem nada ao Deus dará, de forma ingênua e “jogando para o universo”. É limitação dos videntes achar que a visão é determinante para apontar o bonito, o agradável, o saboroso, o interessante, o fantástico, o melhor, o mais apaixonante.
Minha amiga Juscilene que o diga. Cega daquelas que puxam cachorro na rua, casou-se com Sandro sem ver o naipe do rapaz. Estão juntos há mais de década, são felizes, faceiros e fizeram família. Tudo bem lindo, com escolhas maduras e com profundidade emocional.
Coisas possuem cheiros, texturas, formas, combinações, tamanhos. Pessoas possuem tudo isso e também energia, histórias, experiências, afetos, dramas, empatia, covardia, tesão, paixão, caráter…
Conhecer e receber alguém romanticamente, sem que haja contato visual, até pode embutir um risco de fracasso, mas que, seguramente, esvaia-se muito com o nível de conexão legítima que se estabeleça antes do cara a cara.
Atribuir à “cegueira” o desmantelo de um prometido enlace, então, namora firme com o capacitismo, joga sobre quem não enxerga a mensagem do comportamento displicente, sem critérios, na louca.
De alguma forma, quando se engata um relacionamento, qualquer um, mesmo os cheios de juras de amor eterno e que caminham para a união a dois, um contrato com o desconhecido é assinado, um salto rumo ao imponderável é dado, mas o trilhar do desencontro não tem relação com o que se vê.
Abandonar um propagado amor, deixar a noiva —ou o noivo— no altar, tem a ver com as luzes que deixamos de acender, com as escuridões que fomos incapazes de aplacar. Deixemos de falar que a cegueira é vilã de nossas próprias inabilidades.
Por Jairo Marques (03/01/22 FSP)
Deixe um comentário