O amor invisível
As fotos do novo telescópio espacial mostram que não havia ninguém ali, não havia palavras; o espaço é o amor ainda sem nomear
Pedro Mairal
E o amor invisível, o que não se vê? Existe? Sim, é o que mais existe. O outro, o visível, o registrado, sempre pede algo em troca, é moeda para outra coisa. O invisível é o que vale. Não entendo. Você viu as fotos do telescópio novo? Saíram no jornal. Ampliaram um ponto do céu do tamanho de um grãozinho de areia, e só nesse ponto se veem galáxias e galáxias infinitas. Não há ninguém no Universo, nascemos sozinhos nesta pedra enorme.
Ninguém nos vê. E no entanto você se levanta, toma café, quer saber o que acontece, cumprimenta o vizinho, trabalha, cozinha para si ou para alguém mais, pendura a roupa que pôs para lavar… Sem testemunhas. Ninguém vê.
Somos o único olho. Inclusive quando você trata bem a si mesmo, isso é amor invisível. As câmaras do seu reality show nunca estiveram ligadas. Mas o amor que eu sinto vai morrer comigo? O que acontece com todo esse amor quando eu não estiver mais? Dissipa-se? Apaga-se como vela no vento? Não sei. Eu só tenho perguntas. Mas você faz canções. Todas as minhas canções são perguntas.
Escrever sempre é um pouco indigno, porque torna visível o invisível. A palavra às vezes nomeia o que não se sabia que estava ali, mas também eclipsa, crava bandeira de conquista em zonas que não estavam nomeadas, instala um eu autor, um estive aqui. A palavra abre caminhos, mas também impõe sua marca. E a gente nasce todo nomeado, cada membro do seu corpo tem nome, cada dobra dos seus órgãos, cada emoção e reação e dúvida moral que tenhamos já está julgada de antemão pela linguagem na qual nascemos. Já está redigida a sentença de todas as crianças que serão concebidas nesta noite.
Por isso eu gostei das fotos do telescópio espacial: não havia ninguém ali, não havia palavras. O espaço é o amor ainda sem nomear.
Você está dizendo uma coisa qualquer. Bom, suponhamos… O seu cachorro, ele fala? Não, mas late. Mas não fala. E no entanto, a forma como te recebe quando você chega, a forma como se põe ao seu lado quando sabe que você não está bem, a forma como comemora as carícias e quando você se joga com ele no chão, isso tudo não é amor? Acho que sim. E é amor sem palavras. Amor sem A nem M nem O nem R. É amor invisível. Acho que você está confundindo invisível com inominável. Talvez sim.
Mas o que não se vê e o que não se diz está escondido em um mesmo lugar. As palavras são olhos, que veem, tocam e capturam. Os olhos do telescópio. Olhos que só veem recordações, porque essas estrelas, essas nebulosas e galáxias estão tão distantes que já não existem. A luz é sempre uma recordação.
Você está sentencioso hoje, como se soltasse aforismos. Eu me referia a algo mais concreto. Por exemplo, saio de viagem, um homem bonito me faz uma proposta clara, eu poderia passar a noite com ele sem que ninguém ficasse sabendo, mas lhe dou um sorriso e digo que ele é muito atraente, mas que tenho namorado. Ninguém ficou sabendo, vou dormir sozinha. Isso foi um ato invisível de amor. Vale, conta, computa-se a meu favor de algum jeito? Ou quando eu morrer Deus vai me dizer: Pus um homem bonito na sua frente, a oportunidade perfeita para gozar a vida naquela noite, e você deixou escapar?
Deus não existe, o que existe é a linguagem, esse Juízo Final dentro do qual você nasceu. Ninguém vai te julgar fora da linguagem. Ao menos é o que eu acho; já fiquei confuso. Mas estou certo de que ninguém vai te julgar. Bem, então se ninguém vai me julgar, me abrace e me dê um beijo, que você ficou muito astronômico e transcendental, e as estrelas não estão lá longe, estão aqui. Onde estão? Aqui, poeta, aqui.
Tradução: Livia Deorsola (FSP 17/07/22)
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