Pequenos mais afetuosos podem abrir caminho para romper tantas distâncias que guardamos de sensações de proximidade na vida adulta
Ela ostentava nas mãos o papel, rabiscado com canetinha vermelha, como se ali estivesse um mapa da felicidade eterna, como se fosse um troféu por ter vivido um dia de glórias. Em princípio, só me mostrou uma das faces, devidamente didática e fofa.
“O Jobim escreveu os nomes de todos os estados do Brasil aqui, pai. E olha só que interessante, ele colocou Mato Grosso do Sul e, depois, Minas Gerais, os lugares onde moram meus avós. Você acha que foi coincidência?!.”
Há alguns dias percebo um encantamento florido de minha biscoita pelo Jobim e, ao virar a folha com os dados geográficos, estava lá a comprovação e o real motivo do apego.
Tem no ar uma paixão infantil, honesta e devidamente adornada por valores de amizade e afetos que cabem na ingenuidade e na meninez de minha pequena, e quem sou eu para querer tolher uma emoção, uma vez que ela foi feita a base de profundos bem-quereres?
“Elis, você é minha melhor amiga. Nosso laço nunca vai se soltar. Ele está do tamanho de 1000 elefantes. Te amo.”
O menino, entendi depois, estava retribuindo um desenho que ela tinha feito para ele, que também acompanhava dizeres a respeito do quanto é bom ter um amigo e que delícia é poder expressar que gostar é bom, que o mundo precisa de mais gente com sentimentos dos coraçõezinhos.
Claro, eu quis investigar um pouco a paixonite. “Filha, mas esse laço de vocês ficou mais forte nos últimos dias por qual razão? Foram os ensaios da festa junina?”.
“Foi, pai. Ele foi muito gentil comigo, paciente, engraçado. Então acabamos ficando muito amigos.”
E ainda há quem duvide no poder avassalador da escola no emolduramento de valores muito além de letras, números, regras e competitividade. A sala de aula e suas extensões forjam acolhimentos das diferenças, despertam saberes sobre o humano, capacita o olhar para reconhecimentos de direitos, de afagos e também de autopreservação.
Aos afoitos, pitchuca não vai namorar, não está sendo estimulada precocemente a nada e em casa sabemos das delicadezas dessas questões. O respeito ao ser criança em toda sua plenitude é objetivo sempre perseguido, com erros natos de qualquer experiência com seres viventes.
Ela, porém, é livre para reconhecer dentro de si a produção do combustível que nos impulsiona e nos abastece para acreditar que dá para sermos melhores uns com os outros, que o sentido da jornada se amplia quando nos conectamos àquilo que nos faz bem, que podemos praticar amor de formas simples e sem princesamentos toscos.
Crianças mais afetuosas podem abrir caminho para romper tantas distâncias que guardamos de sensações de proximidade na vida adulta, com dificuldades para entender solidariedade, amores diversos, formas múltiplas de manifestação de existir. Andamos muito sozinhos, é só observar.
“Pai, você escreve uma coisa bem bonita no jornal sobre esse desenho para eu poder lembrar para sempre? Ah, e posso colocar na parede do quarto?.”
Agora vou me preparar para o arraíá e para a dança dos amigos dos desenhos adornados com motivos de amor.
O Jobim já está lá, devidamente colado, até que surja um dia, quem sabe, um Vinícius, um Toquinho, um Carlos ou qualquer poeta ou poetiza que floreie os dias da menina e a faça se sentir novamente muito feliz.
Por Jairo Marques (FSP 21/6/22)
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