Em um filme que aborda a surdez, o chamado é para a ampliação dos espaços de maneiras de ouvir o outro
Há multidões de pessoas em torno de tudo que supostamente funciona de maneira convencional se virando como pode para se ajustar ao ritmo cotidiano de acordar, de comer, de estudar, de trabalhar, de amar e de tentar viver alguma felicidade.
Em geral, pouco se dá conta dos esforços individuais de mães que carregam seus filhos no colo para que eles simplesmente cheguem a algum lugar, nada se sabe da labuta de famílias que zelam por seus velhos com dependência extrema, passamos longe de entender como um casal sobrevive após uma mudança repentina da condição de um ou de outro, pessoas com síndrome de Down, autismo? Raros? Puxa, que difícil deve ser…
Uma garota ouvinte, com pais e um irmão surdos, tem de se virar entre seus sonhos e a dependência de sua habilidade de ouvir para ajudar no funcionamento da casa. Vira tudo uma sessão da tarde, há um tanto de distanciamento da realidade tecnológica, mas o debate fundamental está na obra.
O momento histórico que vivemos, embora em solavancos e com ruídos de bombas e de ações virulentas, está colocando a necessidade de se ampliar as oportunidades para “gentes” de todos os tipos em todas as áreas. O sofrimento e a labuta silenciosos de diversidades, porém, resistem encalacrados em famílias, em enfadonhos exemplos de superação, em soluções alternativas e não estruturais
Não cabe a mim discutir critérios técnicos, cinematográficos a respeito do mérito da principal estatueta da mais badalada premiação do cinema ter ido para um filme que debate uma questão da deficiência comunicacional, mas preciso aplaudir o fato de uma discussão em torno das responsabilidades coletivas sobre questões que parecem individuais esteja sob os holofotes, sentada, falando em língua e sinais, no tapete vermelho.
Emilia Jones em cena do filme 'No Ritmo do Coração', dirigido por Sian Heder
Em algumas ocasiões, é somente dando visibilidade a uma causa, dando espaço a um pensamento dissonante que se ampliam os entendimentos —ou os embates— sobre ele. Se feito com legitimidade, sem enroLLação, a chance de evoluir conceitos é enorme.
O mesmo vale para o fato de o Oscar de ator coadjuvante ter ido para um homem surdo, sinalizado —Troy Kotsur. No mínimo, muita gente vai tentar pensar que existem pessoas extremamente talentosas que falam por gestos, que precisam de maneiras outras de existir, de atuar em frente às câmeras ou na vida que se tem aí fora.
É importante demais para as diferenças que haja campos de multiplicidade, que se rompam bolhas do “cada um com seus problemas” e que assumamos mais o valor humano do direito de ser quem é, mas dançando no mesmo baila, com oportunidade, com voz –ou gesto ou legenda ou comunicação alternativa ou audiodescrição ou a bordo de uma cadeira de rodas.
Pegando emprestado, mais uma vez, uma pérola da empatia criada pela antropóloga e colega Mirian Goldenberg, trata-se de “escutar bonito” para tentar reagir lindamente, levando transformação para o outro e para o coletivo, avançando no sentido mais nobre de ser vivente, aquele que dita o ritmo de amar.
Por Jairo Marques (FSP 30/03/22)
Deixe um comentário