O desejo, a ciência e a busca pela perfeição
Não sei vocês, mas eu assisto maravilhada à coragem e à tenacidade de um ser humano que escolheu dedicar quase todas as horas da sua vida para se tornar um atleta. É o prazer do movimento e um amor ao domínio absoluto de cada milímetro do seu corpo. Você quer nada menos que o salto perfeito, o golpe fatal, a estratégia vencedora.
Há a vontade de vencer o outro, claro, e talvez isso seja o que move muitos dos que amam competir. E chegar ao final com a confirmação sempre necessária de que, ufa, venci. Sou o melhor. Às vezes não dá, e não consigo disfarçar: choro, bato, soco a câmera, fico de birra, roubo no jogo, quebro a raquete, viro a cara e fujo para não ver o outro vencer. Mas quando sou campeão… Garanto para mim mesmo a reiterada certeza de que sou melhor e tenho mais valor. Sou mais amado que meus pares. E retorna a incessante e arquetípica disputa entre irmãos. Não estava nas antigas escrituras, sagradas ou pagãs? Caim e Abel, quem é mais amado? Espelho, espelho meu, existe mulher mais bela do que eu? A psicanálise também escuta os ecos da rivalidade narcísica em seu divã. Enfim, a competição é tema ancestral.
No entanto, mais do que esse aspecto feijão com arroz das nossas vidas, o que me encanta é a angústia humana se fazendo realização, conquista, obra. Isso é arte. Qual o movimento exato? A performance perfeita? E é também ciência: até onde vai o meu corpo? Afinal, como funciona um corpo? Conheci, há muitos anos, uma americana cientista do movimento. Filmava milhares de horas de desempenhos de atletas e, com sua equipe de laboratório que se debruçava sobre as fibras e químicas da vida, buscava decifrar como é possível que um relativamente frágil espécime da família dos primatas saltasse alguns metros acima de sua própria altura. Ou conseguisse correr muito acima da velocidade de seu passo usual, na equação mais sprint x mais tempo. Não preciso dizer que esse primata não é nem saltador nem corredor. Mas ele quer ser. Ele quer ultrapassar sua condição humana e comum, ele quer se superar, o verbo do momento. Ele deseja ser o que não é, quer ir além. Quer respirar onde não respira, seja no fundo do mar, seja no espaço. Ele deseja e sonha. Isso é o humano.
E isso se manifesta em alguns seres em especial. De quase 8 bilhões de pessoas, somente uns 30 mil estão nas Olimpíadas modernas. Mas ainda assim são muitos. São muitos os que têm garra, disciplina, teimosia e resiliência —termos narrados por comentadores esportivos e depois abocanhados pelos departamentos de marketing que contratam pessoas para aliar suas marcas a essas qualidades. A lógica do “patrocínio” e sua tática de ser pai das conquistas alheias. (O poder de apropriação do dinheiro, esse objeto que conecta tudo.)
Sim, tem a determinação do indivíduo. Essa a graça da complexidade da psique de cada um, que fez brotar num determinado tempo e espaço aquele ser com sua performance que se aproxima da perfeição. Isso é Rebeca, Rayssa, Italo, Mayra, Kelvin, Daniel, Fernando, Maria, José… Ou mesmo Marta, Ayrton, Amyr, Guga. Também Amadeus, Johann, Ludwig, Tom, João. Sempre nos intriga —e movimenta o mercado de biografias— a delicada trama de vetores que gestou um sujeito que soube fazer o melhor daquilo que recebeu do seu tempo e da sua história.
E não é só o mérito individual que forja essa escultura. Também o pai, a mãe, a tia, o avô, o professor, o treinador e todos aqueles que ocuparam a função de modelo e de incentivador para o pequeno ser em formação. Que via a avó não desistir nunca, que teve a mãe que acordava cedo para levar no treino, que escutava do pai a palavra-chave para seguir adiante. A teia das relações é que produz o milagre.
Assim como a teia mais ampla, a social, que elabora as políticas públicas e faz ter uma quadra e aparelhos espalhados pelas áridas cidades e suas bordas. Para que todos —todos— possam se exercitar e sonhar. Possam desejar e trabalhar pelo seu desejo.
Quem sabe um dia o Olimpo possa ter mais deuses.
@maria.homem
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