É uma delícia a sensação de ser imunizado contra essa peste do século 21 que revirou nossas vidas e nossas cabeças, não é mesmo? Não por acaso fotografamos, postamos, choramos e agradecemos a Nossa Senhora da Ciência pela dose recebida.
A picada não dói e temos a impressão de conseguir acompanhar a entrada do elixir da vida nova no corpo, que vai percorrendo nossas entranhas e nos afastando de tubos, asfixias e de um adeus final. Tomar vacina contra o coronavírus tornou-se um marco emocional que determina o futuro de nossas felicidades.
Mas foi por bem mais que isso que a mãe de Sofia catou sua menina de 16 anos, cadeirante, que contorna todos os dias os efeitos de uma paralisia cerebral grave, e a botou dentro de um carro para vencer mais de mil quilômetros de distância e ser imunizada, libertada, renascida.
Em São Paulo, a cidade da garota, a cidade da vacina, a cidade do progresso, onde o Brasil acontece, o recanto de “João Vacinador”, não daria, não poderia, ainda não há essa prioridade.
Adolescentes com comorbidades, aqueles com respiradores, com complicações de saúde a perder de vista, aqueles que tomam medicações “complicosas”, aqueles que comem o pão que o diabo não quis para se tornarem adultos com realidades melhores, estão fora da fila.
Convenhamos. Pense por 30 segundos e encontre na cabeça um exemplo de um bom bolsonarista selvagem —daqueles que entram sem máscaras em salinhas com a inscrição “festa do corona”—, que já foi imunizado como “prioridade”, com uma reluzente “pifaizer”! Não tem cabimento.
Havia um ano e meio que Sofia estava sem sair do apartamento —você, confesse, deu várias escapadinhas para esticar as pernas e matar a saudade do mundo— e está sem acesso a terapias, que ajudam a progredir sua qualidade de vida ao mesmo tempo que amenizam suas dores.
Ela não teve a menor chance de voltar às aulas presenciais. Não era uma questão de não correr riscos, era uma questão de não poder nem pensar na chance de ser contaminada para, dessa forma, seguir viva.
E Sofia, depois de mais dez horas de estradas, em sua maioria, paulistanas, cheias de pedágios, chega a Campo Grande, em Mato Grosso do Sul —minha terra!— capital que, visionariamente, decidiu vacinar também mães de pessoas com deficiência, a quem, normalmente, recai o trabalho de cuidadora dos filhos.
—A vacina acabou, dona, senhora. Mas vai dar certo, aguenta mais um pouco…
Medo, tensão, gastos, estresse, o Doria não se mexendo, a CPI comendo, os sites inventando cada vez mais modas sobre um raio chamado “cringes” e Sofia não vacinada por mais 24 horas, agora fora de casa, respirando um ar que sabe-se lá quem sorveu, quem bafejou.
Fala com a ouvidora, com a coordenação-geral, com o generalato, com o papa e alguém grita do fundo do seu coração, de sua humanidade, de seu bom senso, de dentro do posto de saúde: “Vacinem a menina!”. E Sofia foi vacinada.
As histórias em busca do imunizante ainda vão render obras literárias incríveis e pouparão famílias de relatos dramáticos de sofrimento e de perdas. Mas falta ainda, nesse processo gigantesco de corrida pela retomada da chance de aprender a fazer algo de bom com a existência, aguçar sensibilidades, ampliar olhares.
Não tenho dúvida de que haja boa e correta estratégia logística em quem traça os planos de imunização, porém nunca, nunca quem está vivo poderá deixar de gritar por nossas Sofias.
Por Jairo Marques (FSP)
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