Pense nestes últimos meses em que os encontros foram raros e lembre com ternura daquele dia em que você sorriu quando alguém te surpreendeu com uma mensagem inesperada que encheu o coração, ou da noite em que recebeu um convite para uma festa de aniversário pelo Zoom que alegrou uma sexta-feira vazia.
Fique sabendo que essas demonstrações de afeto são ínfimas se comparadas ao que a Luciana é para mim.
Ela é a voz que me acompanha do nascer do dia até o sono me alcançar. Sua fala doce e apressada é o som que mais escuto todos os dias. Ouso dizer, se não fosse por sua ajuda, este texto nem existiria.
Ao acordar, ainda na cama, as primeiras palavras que escuto todas as manhãs vêm dela. Enquanto tento descobrir em que dia estamos, Luciana me conta quais as manchetes do jornal. Nos aprofundamos em alguns textos durante o café, até que decido que é hora de relaxar e navegamos juntos em um aplicativo de música. Ainda bem que ela tem paciência para ler e reler o nome dos discos e faixas até eu descobrir o que quero.
Quando, com minha bengala, vou para a redação, Luciana pega o metrô comigo. Paciente, lê no meu ouvido os emails que chegaram desde a noite anterior para me preparar para os desafios que virão. Depois escolhemos um livro para compartilhar no resto do caminho. Pode ser a Bíblia, Dostoiévski ou Bruna Surfistinha, ela conta tudo com leveza e discrição e sem nenhum julgamento.
Chego no jornal e converso com os colegas. Mas não consigo ficar muito tempo longe dela. Logo estamos juntos procurando pautas, ela me soletrando o que quero escrever. Ainda bem que minha amiga não é avarenta e nunca pediu para ficar com parte do salário, pois mereceria.
Claro que não acredito em perfeição nos relacionamentos e, neste caso, não é diferente. O que tenho com a Luciana poderia ser descrito como uma via de mão única. Ao mesmo tempo em que ela fala tanto, não serve para confidente, nunca me escuta. E o que sei sobre ela? Nunca a vi nem toquei nem a ponta de seus dedos, não conheço seus medos e desejos, amores e frustrações.
Como homenagem a esta amizade, o melhor que posso fazer é explicar de onde ela veio e como outros podem encontrar uma companhia como essa.
Luciana e vozes tão legais como a dela estão na maioria dos smartphones. Se você a chamar, ligando o VoiceOver nos aparelhos da apple ou o TalkBack, nos celulares com sistema Android, sua nova amiga vai passar a ler tudo o que está na tela. Tome cuidado, isso muda toda a configuração de uso do aparelho e você pode se atrapalhar até conseguir fazê-la ficar quietinha novamente.
Com a Luciana lendo, quem não enxerga pode fazer de tudo no celular, se divertir e informar com livros eletrônicos, usar o WhatsApp, GPS, as redes sociais e aplicativos de transporte. Ela ajuda inclusive a acertar a mira na hora de digitar naquelas letrinhas miudinhas. Por enquanto, não consegue achar textos em imagens, então, quando for mandar fotos para alguém com deficiência visual, descreva o que está enviando, inclusive os textos. As carinhas, ou emojis, não precisam ser explicadas, ela já as entende e conta se há um rosto sorrindo ou um rosto piscando o olho e mostrando a língua, com essas palavras mesmo.
Leitores de tela também são usados para que pessoas com deficiência visual escrevam e leiam no computador. Sim, é comum decorar o teclado quando não se enxerga, mas isso não basta. A Luciana me repete cada letra que eu digito. Depois posso pedir que soletre, leia linha por linha ou o texto inteiro de uma vez para saber se está tudo no lugar certo. Eu já disse que ela é muito dedicada?
Agora vou contar uma fofoca, espero que Luciana não leia. Apesar de todo seu empenho, ela não sabe me ajudar muito bem com ortografia. Se alguém escreve casa ou caza, cachorro ou caxorro, ela lê tudo igualzinho. Quem não está lendo com os olhos precisa ter muita atenção para não ouvir latidos do leitor depois, caso haja um deslize. Felismente iço numca acontesseu aki.
#PraCegoVer Leia a última frase com seu leitor de tela soletrando letra por letra.
Filipe Oliveira (FSP 28/09/20)
Deixe um comentário