MOSQUERA, Carlos Fernando França. Entre devaneios e ilusões:educação especial e memórias inclusivas. Curitiba, Editora do Chain, 2019. 144p.
A resenha deste livro foi produzida por integrantes do Grupo de Estudo em Ludomotricidade (GEL), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Trata-se de um trabalho de Pós-doutoramento de Carlos Fernando Franca Mosquera. O autor é professor de educação física, fisioterapeuta, doutor em fisiologia do exercício e pós-doutor em educação, docente da Universidade do Estado do Paraná (UNESPAR) em Curitiba. Estudioso e autor de obras sobre a educação física especial e educação inclusiva.
Na apresentação anuncia-se um ensaio, conforme orienta a Dra. Anita Helena Schlesener. Anti Lattes (currículo), antiprodutivismo na ciência e anticapitalista, o escritor posiciona-se como um anarquista científico. Mantem-se coeso nessa posição, ousando o livre pensar sobre a educação física especial e inclusiva. O leitor é provocado a refletir sobre dois temas centrais: 1) É possível uma organização social que respeite as diferenças e inclua? 2) Como se definem critérios de normalidade e de não normalidade em seres humanos? Em sua curadoria literária trouxe para reflexão ícones ibero-americanos, Cervantes e Assis, com Dom Quixote e o Alienista, respectivamente. O personagem Saci Pererê de Lobato, abre o segundo capítulo. Ambas partes provocam o pensamento do leitor, uma viagem pela literatura e pelo folclore brasileiro, com o intuito de pensar a diferença e a resiliência das pessoas com deficiência (PcD). A seleção literal sustenta-se aparentemente sobre três pontos: 1) A vivência das culturas brasileira e espanhola, pois o escritor brasileiro cursou doutorado na Espanha; 2) A inquietação com os conceitos e determinações sociais do que são o normal e o anormal; 3) Talvez, uma demanda de autoanalise de suas próprias memórias, suas escolhas, realizações e frustrações perante suas investidas com o ensino do Judô para pessoas com deficiência visual. Quem sabe, uma autocrítica elogiosa da loucura.
Adotaram-se os seguintes critérios para analisar o texto: 1) Estilo e correção de linguagem; 2) Qualidade das fontes utilizadas; 3) Coerência interna e com a metodologia anunciada; 4) Aprofundamento e atualização da discussão com a literatura; e 5) Contribuições e inovações. Os critérios elencados para análise fugiram a predeterminações para resenhas, uma vez que seria injusto com o estilo de escrita que o autor se comprometeu.
No primeiro capítulo destacou-se a tentativa de reescrever a história da educação especial, sem uso de datas e fatos em linha temporal, organização comumente usada em outras fontes sobre o assunto. Mencionou-se passagens pré-históricas e das antigas civilizações orientais e ocidentais, cuja visão preponderante era da eliminação da pessoa doente ou disfuncional, embora coexistissem registros da convivência cotidiana com pessoas com algum tipo de deficiência, como no caso do nanismo, da cegueira e de amputados. O autor destaca Homero, autor de Ilíada e Odisséia, que era possivelmente cego. No percurso histórico da educação especial, Mosquera dedica uma espaço relevante a instituição escolar. A escola foi e continua sendo contraditória no trato com o diferente, segundo o autor. Ela instrui com o objetivo de incluir socialmente as pessoas e, exclui, com a intenção seletiva para o mercado de trabalho, sobretudo no contexto do sistema capitalista hegemônico nos últimos séculos. A segregação foi dominante na escola universal e brasileira, haja vista o fato da criação das escolas especializadas no atendimento de diferentes tipos de deficiência, como é bem retratado no estudo, ao citar os exemplos dos Institutos Benjamin Constant (Cegos) e Instituto dos Surdos-Mudos, ainda no segundo império no Brasil. Essa discussão persiste na atualidade, ou seja, escola especializada ou escola inclusiva, apesar de todos os avanços e retrocessos do pensamento sobre a educação especial, impulsionados pelo iluminismo, pelo positivismo e, também, pelo capitalismo e neoliberalismo, mas recentemente. O movimento pela inclusão desenvolveu-se a muitas mãos, de acordo com o autor. Foi impulsionado por momentos críticos da história, como foi o caso das ideias eugenistas que culminaram com as duas grandes guerras mundiais. Ambos conflitos foram duros golpes na humanidade, mas deles resultaram avanços nas ideias imaginadas de progressos sociais, como a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no início do Século XX e da Organização das Nações Unidas, com o fim da Segunda Guerra Mundial, onde neste último caso se promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As duas entidades muito contribuíram para o direito das pessoas com deficiência, tendo em vista o enorme contingente de desvalidos com os dois maiores conflitos bélicos já presenciados. O estudo afirma que estes acontecimentos promoveram o ideal de integração da pessoa com deficiência, em que as escolas passaram a promover a convivência num mesmo espaço, apesar de prevalecer a segregação, pois não só as pedagogias, mas, também, os recursos didáticos e a arquitetura dos ambientes educacionais, não favoreciam esta integração. Também são abordadas as legislações da educação especial e inclusiva no Brasil, em que o pesquisador critica a não efetividade das mesmas. Personagens relevantes do movimento pela inclusão são lembrados, passando de Braille à Pestalozzi, de Montessori à Claparede, auxiliando na compreensão da evolução das técnicas e das pedagogias que impulsionaram o movimento pela inclusão. Mosquera discutiu e recontou a trajetória da educação especial a luz de Durkheim, Marx, Foucault, entre outros, revelando sombras e invisibilidades do movimento em prol da inclusão, com destaque para a reflexão acerca do capitalismo e sua hegemonia. Encerrou-se o capítulo com as proposições da Lei da Inclusão e o Guia da UNESCO para a inclusão e a equidade na educação, acompanhado da merecida crítica, situada entre o que se anuncia e o que se efetiva nestas políticas públicas, em tempos de neoliberalismo econômico, em que pese a noção de incluir o diferente, mas que colide com a noção de meritocracia individual, com o mínimo de suporte social do estado.
No segundo capítulo apresentou-se um ensaio sobre uma pedagogia, tecida no ato de refletir docente, acerca da relação do objeto de conhecimento (os conteúdos e currículo do Judô), com os aprendizes (pessoas com deficiência visual (DV)), num ambiente dito inclusivo. Também relatou sua experiencia profissional e acadêmica do Projeto Judô, realizado em instituição para pessoas com DV, a FACE, em Curitiba-PR. Inicia com a evocação do personagem Saci Pererê, com o binômio deficiente, porém, esperto. No subtítulo “Prolegômeno”, Mosquera ensaia um ponto centralizador, as “forças para a superação”. Sustenta esse pensamento em conjunto com Shophenhaeur, Nietzsche, Freud, Foucault, Galeano, Bosi, entre outros Admitindo que existe uma motivação inerente as pessoas com deficiência, em razão das inúmeras formas de exclusão social que vivenciam, consistindo numa fonte de energia ontológica, manifesta em suas motricidades, mesmo com alguma necessidade adaptativa ao meio. Este ponto chamou atenção dos integrantes do GEL da UFRN, tendo em vista a linha de pesquisa de aspectos psicobiológicos da motricidade humana em situações lúdicas, em que se justifica a confecção desta resenha. São apresentados dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para descrever o quadro geral das pessoas com deficiência no Brasil, estimados em 23,9% da população. Também, um modelo para a consciência, o de Ken Wilber, no qual ocorre uma evolução do eu para o nós e, do nós, para o todos nós. Modelo multidimensional, cuja espiral está em consonância com os ideais da inclusão, defendidos no texto. Mosquera trata com muita propriedade das características peculiares a cada deficiência na jornada da vida, em especial, as pessoas com DV. Quando delimita as minúcias da subjetividade da pessoa cm DV e de sua interação social, o autor abre caminho para relatar sua experiência sui generi, o Projeto Judô. O conceito de memória é devidamente demarcado com a ajuda de Goethe e Damásio e, a partir de então, o clímax do livro, ou seja, o relato de experiência da mediação do pesquisador frente ao ensino do Judô para pessoas com DV, participantes do Projeto Judô, junto a FACE, em Curitiba-PR, durante os anos 80. O autor destaca a vanguarda do projeto, pioneiro na perspectiva inclusiva. A noção de imagem corporal é abordada, assim como a relevância das aptidões psicomotoras, no contexto de uma prática corporal em que a emoção do medo é preponderante, e a motivação pela superação é evidenciada. Neste ínterim, propõem-se uma educação das emoções via esporte adaptado e paralímpico, partindo do reconhecimento de uma inteligência emocional típica nas pessoas com DV. Isso se revela na expressividade psicomotora, tanto pelas características faciais, quanto pelas couraças corporais, devido a não possibilidade de imitação. Também são propostas alternativas de trabalho corporal, que desafiam as contradições da condição da DV, onde os estímulos para o ensino são predominantemente sonoros e táteis, passando por técnicas de massagem, treino de técnicas do judô, até teatro. Ressalta-se no relato de experiência o processo inclusivo, que se consubstanciou na oferta de uma atividade numa escola especial, que levou seus beneficiários a viajarem para competições regionais, nacionais e internacionais, que chamou atenção da comunidade circunvizinha e da mídia, modificando a maneira de ver as pessoas com deficiência e, finalmente, ampliou o universo de participação social das pessoas com DV no conviver com as videntes. O segundo capítulo aponta referenciais importantes para o Projeto Judô, a citar o construtivismo piagetiano; o sociointeracionismo vygoskyano, os sistemas ecológicos de Bronfenbrenner, o modelo desenvolvimentista de Gallahue e Ozmun, as lições psicanalíticas freudianas e o materialismo histórico de Marx. Além destes, Mosquera cita ainda a importância de um ensino pautado em habilidades e competências e outras orientações técnicas específicas do processo ensino-aprendizagem do Judô.
O livro apresentou linguagem clara, embora o uso de algumas citações no texto não ajudem nesse sentido. O leitor é transportado para um ambiente de contação de história, dando a impressão de estar ouvindo do próprio escritor os seus devaneios e ilusões, bem como suas vivências com o Projeto Judô. Esse é um ponto forte da obra, pois o leitor é estimulado a penetrar no pensamento do escritor, pois percebe-se que o mesmo tem algo de significativo para compartilhar sobre a educação especial. O texto é pouco didático, um tanto descontínuo e não linear, tanto histórica, quanto geograficamente. Mas não menos interessante devido ao seu estilo anárquico assumido na apresentação. Recomenda-se uma revisão ortográfica e gramatical da primeira edição, pois foram encontrados erros ao longo do texto, mesmo que em pequena quantidade. As fontes bibliográficas utilizadas pelo pesquisador denotam o multiculturalismo que tratou o assunto. Obras artísticas, textos filosóficos, artigos científicos, leis, entre outras fontes, compuseram a discussão sobre a educação especial e inclusiva. Esse aspecto merece destaque, pois ler a presente obra enriquece o repertório literário do leitor, ao passo que sustentou, em parte, os problemas de pesquisa anunciados. Sentiu-se ausência de nomes mais contemporâneos envolvidos nas discussões sobre educação inclusiva e neuroeducação, a citar David Rodrigues e Stanislas Dahaene, respectivamente. Julgou-se insuficiente os contrapontos da crítica a hegemonia do sistema capitalista, deixando uma lacuna. Considera-se importante apontar cenários possíveis para substituir ou reformar o sistema político e ideológico vigente, e como o movimento pela inclusão pode sobreviver e, quem sabe, prosperar e coexistir noutro contexto sociopolítico, mesmo que a crítica por si só seja relevante. Outro problema identificado diz respeito as citações e referências bibliográficas, que por vezes aparecem citadas no corpo do texto, mas não estão referenciadas ao final do livro e vice-versa. O texto é provocativo e propositivo, seja pela análise histórica e teórica ensaiada na primeira parte e início da segunda, seja pelo relato, no fim da segunda parte do livro, constituindo-se num texto inteligente e inteligível sobre a educação especial e inclusiva. Recomenda-se a utilização do livro em Cursos de Pós-Graduação em Educação Especial e Inclusiva, assim como, em Cursos de Graduação que tematizem as práticas corporais com pessoas com deficiência, feitas as devidas ressalvas. O pesquisador foi coerente com a produção de um ensaio, mesmo que no final do segundo capítulo se apresente um relato de experiência. As contribuições se destacam nas reflexões sobre a educação especial e perante um modelo de educação inclusiva, por intermédio ora do esporte adaptado, ora do paradesporto, em especial para as pessoas com DV. Neste último aspecto a inovação pedagógica é inegável, sobretudo pela compreensão filosófica de que existe algo “vazio” que norteia e motiva a pessoa com DV e a todos que estão envolvidos no processo inclusivo, para que todos aprendam e superem os obstáculos constantemente, num contexto de prática essencialmente desafiador, neste caso o Judô, prática corporal oriental e secular, carregada de signos e valores intrínsecos, dignos de apreciação ética e estética.
Com isso, recomenda-se a leitura e debate da obra “Entre devaneios e ilusões: educação especial e memorias inclusivas”.
Resenha: UFRN
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