Pesquisadores traçaram formas com uma corrente elétrica, e os padrões foram reconhecidos por pessoas sem visão
Cientistas conseguiram fazer com que duas pessoas cegas conseguissem visualizar e identificar o desenho de letras e outras formas geométricas a partir de estímulos elétricos no cérebro.
O feito foi publicado nesta quinta-feira (14) em um artigo na revista científica Cell, uma das mais rigorosas da área da biologia. O trabalho foi realizado por pesquisadores da Universidade de Medicina Baylor e da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Para produzir o efeito, os pesquisadores implantaram uma grade de eletrodos ordenados no cérebro dos participantes do estudo. Os dispositivos estavam posicionados superficialmente no córtex visual, parte do cérebro responsável pelo procesamento de imagens.
“Pessoas que adquiriram cegueira tipicamente têm danos nos olhos ou nos nervos ópticos, mas não no córtex visual, a região do cérebro que contém mapas do mundo visual”, disse à Folha Daniel Yoshor, chefe do Departamento de Neurocirurgia na Universidade Baylor e um dos autores do artigo.
Segundo Yoshor, já se sabia que mesmo em cegos a estimulação elétrica da região pode fazer as pessoas perceberem pontos de luz, o que oferece a possibilidade da criação um dispositivo capaz de fornecer informação visual diretamente ao cérebro e, assim, restaurar um tipo de visão útil.
Estudos anteriores haviam conseguido fazer com que os pontos de luz fossem visualizados por pessoas cegas. O desafio transposto por Yoshor e sua equipe foi organizar esses pontos em formas geométricas identificáveis e letras. Os cientistas fizeram isso usando a eletricidade para desenhar sobre a placa de eletrodos.
A eletricidade passou pelos eletrodos, um após o outro, até que um traçado fosse estabelecido na superfície do cérebro do participante. Yoshor descreve a técnica como desenhar na palma da mão de alguém com os dedos.
“Em vez de estimular o formato de uma letra de uma vez, traçamos um padrão preciso do formato que queríamos com a corrente elétrica sobre o córtex visual”, explica o médico.
O experimento foi feito com quatro pessoas com visão que possuem eletrodos instalados para o monitoramento de episódios de epilepsia e duas pessoas cegas que também já tinham o dispositivo no cérebro como parte de outro estudo sobre o córtex visual.
Enquanto recebiam o estímulo, os participantes reproduziam os desenhos com os dedos em uma tela sensível ao toque (veja o vídeo). Um dos participantes cegos teve taxa de acerto superior a 90%.
Uma das possibilidades para o futuro é ligar uma microcâmera aos eletrodos, permitindo que as imagens sejam traduzidas em estímulos elétricos.
“Para alcançarmos isso, precisamos de melhorias no hardware e no software. Esperamos conseguir produzir uma grade com até milhares de eletrodos. Mas saber que somos capazes de fazer essas pessoas perceberem letras com o estímulo no cérebro já é muito animador”, diz Yosher.
Para Mário Motta, professor de oftalmologia da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oftalmologia (SBO), o estudo traz a perspectiva de que em até dez anos a técnica possa ser aplicada em uma escala maior.
“Para quem está no escuro, sem ver nada, é um benefício imenso. Isso permitirá conhecer um mundo que não se conhecia, ganhar uma vida nova”, afirma o médico.
De acordo com Motta, grande parte dos cegos tem o córtex visual funcional, o que significa que um número considerável de pessoas podem ser beneficiadas pela técnica, incluindo aquelas que nasceram sem visão.
“Para entender isso basta lembrar que, quando estamos dormindo e sonhamos, ainda assim conseguimos ver imagens, mesmo de olhos fechados. Quem produz essas imagens é o cérebro, com base em nossas lembranças”, explica Motta.
Segundo Eduardo Büchele Rodrigues, professor de oftalmologia da Universidade Saint Louis, nos Estados Unidos, o artigo representa um avanço nas tentativas de usar essa técnica em pessoas cegas.
“Mas entender como comunicar energia elétrica ao corpo humano e desenvolver uma forma de fazer essa estimulação por vários anos de uma maneira segura são os grandes desafios”, afirma.
No experimento americano, foi usada uma corrente elétrica de baixa intensidade. Os efeitos que esse estímulo pode causar quando aplicado por um período mais longo ainda não é conhecido. No artigo os pesquisadores cogitam usar, no futuro, outras maneiras para estimular o cérebro, como o ultrassom, que poderia também ser menos danoso e mais preciso.
Motta e Rodrigues acrescentam que o estudo precisa passar por outras fases e o experimento deve ser feito com um número maior de pessoas para que a eficácia e a segurança do método seja comprovada.
Fonte: FSP 15/05/20
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