Jairo Marques
Para ir emergencialmente ao mercado ou ao armazém de secos e molhados, minha mulher veste uma capa de chuva, calça luvas descartáveis e galochas, coloca a máscara e se enche de coragem no coraçãozinho; é preciso, afinal, evitar o contágio. Isso tudo porque estamos internados em casa há duas semanas, estamos saudáveis e tudibão.
Experimentar a tensão de, a qualquer momento, em uma esquina insalubre, poder enfiar o coronavírus pelo nariz, pela boca e por outros orifícios é bem mais suave do que viver a realidade de encontrar diariamente, frente a frente, o bicho maldito.
Imaginar a rotina de um profissional de saúde nestes dias de angústia de toda a humanidade, quando nos vemos tomados pelo medo de contrair o vírus ou pelo pânico de não saber se nos recuperaremos da Covid-19, é básico para o exercício de empatia com essa classe fundamental para o sucesso nesta batalha sem precedentes.
Médicos, enfermeiros, auxiliares, pessoal de limpeza e de trato com insumos hospitalares estão expostos o tempo todo, sujeitos a receber perdigotos na cara, a tocar em pacientes e em superfícies contaminadas e a passar horas em ambientes lotados de coroninhas ávidos por coronar. E não é uma escolha; é uma obrigação profissional, moral, de vida ou morte.
É bonito e emocionante ver as homenagens em janelas e sacadas mundo afora, quando pessoas batem palmas e fazem piscar as luzes, como se abraçassem os soldados da vida, mas é preciso fazer mais.
No Brasil, principalmente, a situação é complicada porque as palmas se alternam com o barulho das panelas, que, golpeadas com vigor, têm sido usadas com muita frequência para tentar calar o alvoroço de besteiras que sai da boca do presidente Bolsonaro toda vez que ele tenta discursar insanamente sobre saúde pública.
Podemos ficar em nossas casas para que os profissionais de saúde, em algum momento, não precisem sair das suas por dias seguidos, deixando suas famílias à deriva para atender as nossas, vivendo um esgotamento físico e emocional contínuo para que tenhamos o sossego de um suave caminho de cura.
Também podemos tentar combater o ímpeto dos que acham que manter a economia ativa é muito mais importante que salvar montanhas de velhos —e também jovens saudáveis, como tem mostrado o avanço da desgraceira.
Podemos ainda multiplicar informações de qualidade e dar o suporte possível para que desassistidos de toda ordem saibam a hora certa de buscar socorro e a melhor maneira de resguardar outras pessoas infectadas.
Mais do que tudo, a sociedade não pode se descuidar jamais de cobrar, em favor dos profissionais de saúde, as condições da maior excelência possível para que eles trabalhem, para que eles coloquem o peito na linha de tiro para salvar nossos filhos e nossos avós e para que a vida dos que amamos seja poupada.
Para a história, em vez de fuzis, tanques, nomes pomposos em ruas e avenidas, ficarão estetoscópios gastos de tanto uso, jalecos surrados e a força da ciência e do conhecimento técnico —além da doação da própria alma— como estandartes e referências para todos os tempos.
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