Às vezes somos vistos como a imagem de um buraco na fechadura
Geralmente, sou extremamente positivo neste espaço. A ideia é mostrar sempre que há maneiras de manobrar qualquer condição humana, até as mais severas, para dar sentido ao despertar dos dias, para encarar as intempéries do existir.
Desde que entendi que ter uma diferença física, sensorial e intelectual é uma condição que acompanha os ‘ungidos’, não algo que determine quem se é, tem sido assim e tenho falado aos quatro ventos que esta lógica é produtiva para a sociedade.
Mas, de tempos em tempos, a tal incapacidade, a tal impossibilidade batem com força à porta, à realidade e parece que é preciso recontar a história para mim mesmo desde o começo, calibrar os propósitos, recompor pensamentos. De certa maneira, cada ser vivente tem lá seus pontos de inflexão e os revisita também de vez em quando, mas com a deficiência tudo é mais visível, meio imutável, dramático.
Na análise dos fracassos, dos desamores, dos finais de histórias, das perdas, é sempre aquilo que você não tem, não pode, não consegue é o que vem à tona como responsável pelas derrapagens, o que não faz sentido, na maioria das vezes, quando a racionalidade, e não apenas a emoção, consegue falar e se impor.
Em termos mais práticos, a impressão que tenho é que numa situação de muito estresse pessoal os olhos de curiosidade sobre minhas pernocas finas se multiplicam, a falta de acessibilidade em um certo ponto irrita bem mais que o comum e as pessoas agem sempre na espreita de minhas incapacidades e me avaliam apenas pelo que não posso. Sou reduzido a uma espécie de buraco da fechadura onde se vê apenas uma parte da história.
A deficiência faz da fuga de si mesmo algo muito complexo, quase totalmente inviável. O poder correr de forma desembestada pelo mundo, poder entrar em uma cachoeira até que a alma esteja novamente alva, fresca, poder subir ao cume de montanha até a beira de ficar sem fôlego, o que para a maioria dos mortais é revigorante, é mais um ‘não consigo’ para vários da minha turma.
Ninguém aprende emocionalmente a conviver com o não andar, não ouvir, não ver, ser meio avariado da cabeça. As experiências vão se acumulando na vida em meio a enfrentamentos, adaptações arrazoadas, insistência e, assim, vai se seguindo em frente sem que, de fato, se consolide que você é apenas uma flor com pétalas a mais ou a menos, mas que o jardim é grande e comporta todo o mundo.
O resultado disso —com certeza, algum bom terapeuta discorra muito melhor que eu a respeito— é que uma lacuna de autoentendimento está sempre à espreita e te dá rasteiras impiedosas ao longo da jornada.
Não sei ao certo como a evolução dará um jeito para haver uma real acomodação dessa situação, que é única.
Penso que o acolhimento e entendimento maior da sociedade para as diferenças pode ter resultado nisso no futuro. Quando se trocar o estranhamento de uma característica física ou sensorial pela legítima curiosidade, a tendência é que se amenizem esses reencontros dolorosos.
Ser cadeirante me imputa ter de pagar uma dívida eterna com meus demônios e abusar da tolerância e paciência de meus anjos e amigos, vez ou outra. É ter de lidar com uma solidão corrosiva pelas ausências impostas por suas formas tortas, incompletas, frágeis.
Como disse no começo da conversa, sou pelo otimismo, pela construção, pela abertura de frestas nos escombros, mas perderia minha legitimidade falando que hoje está “tudo bem”. Mas, amanhã, com fé, estará!
Por: Jairo Marques (FSP)
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